Do Desenho ao Osciloscópio: Os Antecedentes
Computadores e Imagens: A Tomografia Axial
Imagens Funcionais: A Ressonância Magnética
A Radioatividade Criando Imagens: SPECT e PET
As imagens têm uma enorme importância na ciência,
e a neurociência não é exceção. Como temos um sistema visual altamente desenvolvido
(visão colorida, binocular, estereoscópica, de alta resolução, etc.), nossa cognição
depende extremamente da compreensão visual.
Neste artigo, examinaremos a evolução histórica dos métodos baseados em imagem para o estudo da estrutura e da função do sistema nervoso, desde as ilustrações de disseções anatômicas até os métodos mais modernos de ressonância magnética e cintilografia nuclear.
Até os últimos anos do século XIX, os métodos de estudo e documentação do sistema nervoso que utilizavam imagens se limitavam ao mundo relativamente restrito da anatomia macroscópica e microscópica. Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um dos primeiros cientistas a utilizar, a partir de 1489, seu extraordinário talento artístico para mostrar que a imagem não era apenas uma forma de documentar a observação da natureza, como era comum desde Aristóteles, mas também um método extremamente valioso para se entender melhor a estrutura e a função do corpo.
Ilustração do cérebro para o livro de Thomas Willis por Sir Christopher Wren Ilustração dos ventrículos cerebrais por Leonardo da Vinci. |
Sistema nervoso isolado do corpo, por Andreas Vesalius. Clique aqui para ver aumentado |
Aliado à dissecção sistemática, o desenho anatômico macroscópico tornou-se um refinado instrumento de estudo na mão de ilustradores inspirados, entre os quais se destacam o notável anatomista Andreas Vesalius (1514-1564), em seu livro "De Humani Corporis Fabrica", de 1543; e Sir Christopher Wren (1632-1723), o famoso artista e arquiteto inglês, que colaborou com o médico e anatomista Thomas Willis (1621-1675), na ilustração de seu grande livro, "Cerebri Anatome", publicado em 1664. Estes artistas e anatomistas, através do desenho de componentes isolados do restante do corpo, como os nervos, conseguiam aumentar a compreensão da arquitetura do sistema nervoso e assim induzir sua provável função. É um exemplo precoce de como a imagem, mesmo que simples, pode auxiliar a descoberta científica.
Já no século XIX, a progressiva sofisticação dos métodos anatômicos e das técnicas gráficas de representação anatômica permitiram o desenvolvimento da anatomia topográfica, baseada em cortes regulares do corpo orientados em algum plano, e que se revelaram fundamentais, posteriormente, para o desenvolvimento da tomografia. O desenvolvimento das técnicas gráficas de impressão colorida, por sua vez, permitiram aumentar enormemente a qualidade e a riqueza de informações transmitidas pelas imagens desenhadas, como nos atlas do anatomista italiano Paolo Mascagni (1755-1815), um pioneiro no uso da cor em anatomia, e que foi publicado em 1833.
Acima: O cérebro no Atlas de Anatomia Topográfica de Wilhelm Braune (1872). Clique aqui para ver aumentada. A direita: ilustração colorida do atlas anatômico de Paolo Mascagni (1833). Clique aqui para ver aumentada. |
Assim, as primeiras dissecções do sistema nervoso permitiram à neurociência dar o primeiro grande passo no sentido do que, em tempos mais recentes, tem sido denominada de "a revolução da neuroimagem". Esses passos foram:
O segundo grande passo demorou muitos séculos para ocorrer após o primeiro, e foi dado graças à invenção do microscópio em 1595, por Zacharias Jansen (1588-1631), na Holanda. Seu subseqüente uso, por notáveis estudiosos, como Robert Hooke (1635-1703) e Anton van Leeuwenhoek (1632-1723), no século XVIII, levou à progressiva descoberta do mundo microscópico das células e de seus processos. A partir do uso de instrumentos e técnicas mais refinadas, como a invenção do microscópio acromático em 1824, da microtomia e dos corantes, em 1836, e da técnica de Golgi, em 1885, foi possível para a neurociência realizar o segundo passo e começar a usar mais intensamente as técnicas de imagem para investigação básica, bem como para as suas primeiras aplicações clínicas da imagem (neuropatologia). Para esta finalidade, foram utilizados diversos instrumentos que facilitavam o desenho e a documentação fiel dessas imagens, inicialmente através da camara lucida e da camara obscura, e finalmente, pela invenção da fotografia e da cinematografia, já no final do século XIX. Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), o fundador da doutrina neuronal, usava a câmara fotográfica acoplada ao seu microscópio. Outro exemplo foi dado por um dos pais da psiquiatria moderna, Jean-Marie Charcot (1825-1893), que usou de forma pioneira a fotografia para documentar o comportamento anormal de pacientes.
A cinematografia, especialmente, por analizar imagens em movimento, revelou-se extremamente útil no estudo de alguns aspectos funcionais, como o comportamento e a motricidade dos animais e do ser humano, como demonstraram as aplicações pioneiras de Eadweard Muybridge, na Inglaterra, e por Etiénne-Jules Marey, na França, no final do século XIX. Marey chegou a inventar um "rifle fotográfico", em 1882, para melhor fotografar situações naturais. Seu grande discípulo, Lucien Bull, desenvolveu novos equipamentos e aperfeiçoou a técnica cronocinematográfica de Marey para observar fenômenos extremamente rápidos, como o vôo de insetos. A cinematografia, aliada ao microscópio, também permitiu a obtenção de imagens de células e organismos microscópicos em movimento, e documentar mudanças lentas, através da técnica de lapso de tempo.
Cronofotogramas tomados por Etiénne-Jules Marey em 1887, para analisar o voo de um pelicano. |
Câmara fotográfica sequencial usada por Muybridge em seus estudos. |
Os métodos gráficos de registro da atividade elétrica do sistema nervoso, por sua vez, foram as primeiras tentativas de se obter imagens funcionais do sistema nervoso em ação (o terceiro passo). Embora elas não fossem neuroimagens, no sentido mais estrito do termo, tornarem-se poderosas tecnologias pictóricas na neurociência, a partir do momento em que as variações bioelétricas puderam ser amplificadas e registradas em função do tempo, em telas fosforecentes, filme fotográficos ou papel, como no caso do galvanômetro de corda (inventado por Willem Einthoven (1860-1927) em 1902, e usado por Hans Berger (1873-1941) em 1924, para a descoberta do eletroencefalograma), e do osciloscópio (introduzido em 1922 na neurociência pelo neurofisiologista americano Herbert Gasser (1888-1963).
Primeiro registro oscilográfico de um potencial de ação (Gasser,1922). Primeiro tubo de raios catódicos usado por Gasser para obter registros gráficos. |
Primeiro registro eletroencefalográfico (Berger, 1924) Diagrama de um galvanômetro inscritor em papel |
Bem no final do século XIX, no entanto, uma notável descoberta mudou radicalmente o uso de imagens na ciência e na medicina. Ela trouxe, finalmente, ao alcance dos cientistas, um velho sonho: o de visualizar o interior do corpo vivo, sem necessidade de abrí-lo. Os raios X foram o fenômeno físico que permitiram essa revolução na medicina e na ciência.
Prof. Renato M.E. Sabbatini, PhD é um neurocientista com doutorado em neurofisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e um estágio de pós-doutoramento como cientista convidado do Instituto Max Planck de Neurobiologia, de Munique, Alemanha. Ele é professor associado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), editor associado e coordenador da seção de História da Neurociência da revista Cérebro & Mente. Email: sabbatin@nib.unicamp.br
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Publicado em 1.Mai.2003