A História da Neuroimagem

Renato M.E. Sabbatini, PhD

Voltar ao índice

6. Enxergando com Sons

A possibilidade de obter imagens internas do corpo usando outros tipos de ondas atraiu os cientistas desde que os primeiros aparelhos de sonar foram desenvolvidos para aplicações militares e industriais. O sonar, utilizado desde a Segunda Guerra Mundial para localizar objetos submersos, como submarinos e cardumes de peixes, utiliza um pulso curto de som de altíssima freqüência (alguns milhões de ciclos por segundo), denominado ultrassom, pois somos incapazes de ouví-los (nossa audição trabalha na faixa entre 20 a 20.000 ciclos por segundo, apenas). Ao detectar o eco (reflexão) dessa onda de som em um objeto distante, imerso em ar ou água, é possível para o equipamento computar a sua distância da fonte de emissão do som, bem como o grau de refletividade do material que é feito. Essa propriedade é denominada de ecogenicidade (capacidade de gerar ecos). Por exemplo, se enviarmos um pulso de ultrasom para o interior do crânio, os ossos, as meninges e o parênquima cerebral são mais ecogênicos do os ventrículos cerebrais, que são cheios de água.

A geração e detecção de ondas sônicas de alta amplitude e freqüência foi possível graças a uma série de descobertas e invenções em física e engenharia. Para isso, foi fundamental a descoberta do chamado "efeito piezoelétrico", por Pierre Curie (1859-1906) e seu irmão Jacques Curie (1856-1941), em 1880. Eles descobriram que alguns materiais, como um cristal de quartzo, ao serem submetidos a forças constritivas, geram eletricidade (efeito piezoelétrico direto), e que, ao contrário, ao serem submetidos a um campo elétrico, sofrem modificações em suas dimensões (efeito piezoelétrico inverso). Esses dois efeitos são, respectivamente, a base para duas invenções importantes, o transdutor e o microfone de ultrassom. Os primeiros transdutores e detectores piezoelétricos de alta potência para uso no sonar foram desenvolvido pelo físico francês Paul Langévin (1872-1946), em 1917.

Um neurologista austríaco, Karl Theodor Dussik (1908-), da Universidade de Viena, e seu irmão. o físico Friedrich Dussik, foram os primeiros a utilizar o ultrassom no diagnóstico médico. no começo dos anos 40s.

Hiperfonografia do cérebro obtida por Dussik em 1947

Colocando um detector de ultrassom do lado oposto do crânio onde estava o emissor, os irmãos Dussik utilizaram uma ultrassonografia de transmissão, ao invés de reflexão. Eles tinham a intenção de medir a distância e dimensões dos ventrículos cerebrais e de tumores, a partir do seu diferencial de transmissão (os tumores são mais compactos que o parênquima cerebral ao seu redor, portanto produzem uma transmissão mais rápida do som. Os ventrículos, por serem cheios de água, transmitem mais rapídamente). Medindo a velocidade de propagação da onda de ultrassom no cérebro, seria possivel avaliar distâncias com precisão de alguns centímetros. Os irmãos Dussik não tiveram muito sucesso com o método de transmissão, em parte devido à interferência dos ossos cranianos, mas publicaram assim mesmo os resultados em 1942 com o título de "Hiperfonografia do Cérebro". Posteriormente, em 1952, outro pesquisador W. Güttner, analisando as imagens obtidas pelos Dussiks em crânios vazios, demonstrou que as imagens obtidas por eles eram artefatos de transmissão gerados pelas discrepâncias de espessura dos ossos, e o método foi abandonado.

Karl T. Dussik

John M. Reid

John Julian Wild

Lyle A. French

Devido à inadequação do método de transmissão, a pesquisa e utilização do ultrassom em medicina ficaram prejudicados por uma década, até que, por volta de 1950, outros médicos, trabalhando nos EUA e na Europa, começaram a utilizar o princípio do sonar, com pulsos unidirecionais, usando o detector no mesmo lado que o emissor. Para isso, foram adaptados equipamentos já existentes, em uso na indústria metalúrgica para detecção de falhas internas em peças de metal, denominados de reflectoscópios. Devido à freqüência sonora muito baixa, esses equipamentos não se demonstraram ser úteis para obtenção de imagens clínicas. Utilizando freqüências maiores, de 15 megaciclos por segundo, três pioneiros, os médicos Lyle A. French e John J. Wild e o engenheiro Donald Neal, utilizaram esse equipamento em 1950 para a detecção de tumores cerebrais. Inicialmente eles fizeram experimentos em material de necrópsia, e posteriormente, em pacientes vivos, com grande sucesso. Os trabalhos, de grande repercussão, foram publicados nas revistas Cancer e Journal of Neurosurgery, em 1950 e 1951, respectivamente.

O ultrassom pode ser usado para obter dados do interior do cérebro em dois modos de operação:

O primeiro, denominado de modo A (amplitude), mostra em um osciloscópio os ecos obtidos por um transdutor colocado sucessivamente dos dois lados da cabeça, em posições simétricas. O traçado resultante pode ser usado para obter medidas de distância, dimensões ao longo do eixo de emissão e reflexão, e grau de refletância (ecogenicidade)

O segundo, denominado de modo B, visualiza esse feixe em duas dimensões, a medida em que o feixe é deslocado de um lado para outro sobre a estrutura a ser estudada. A dimensão vertical mostra a intensidade do eco em função da profundidade do feixe de ultrassom, e a dimensão horizontal mostra o deslocamento do feixe.


Ecoencefalografia em modo A. Cada espícula representa um eco. Os traçados superior e inferior foram obtidos um em cada direção, de modo a demonstrar assimetrias nas estruturas visualizadas.

Ecoencefalografia em modo A. As imagens escuras no centro são os ventrículos cerebrais.

Equipamento M100 para ecografia em modo A (1954)

Equipamento Combison 1 para ecografia em modo B (1966)

O modo B é tecnicamente muito mais difícil de obter do que o modo A, mas é mais informativo. Foi necessário o desenvolvimento de processadores digitais (computadores especializados) para aperfeiçoar o modo B, que se popularizou a partir da década dos 70s.

O grupo de Wild, no Hospital St. Barnabas, em Minneapolis, construiu em 1952 o primeiro escaneador de ultrassom clínico do mundo em modo B, com a ajuda do engenheiro John M. Reid (1928-), atualmente considerado o seu inventor. Reid foi também responsável, com o cardiologista Claude Joyner, pelo desenvolvimento do primeiro ecocardiógrafo, em 1957.

Outros médicos e pesquisadores que investigaram aplicações neuroclínicas do ultrassom foram Douglas Gordon, J.C. Turner e Val Mayneord, na Inglaterra, Lars Leksell, na Suécia, e Kenji Tanaka e Toshio Wagai, no Japão.

Bem mais tarde, em 1967, a terceira modalidade de ultrassom diagnóstico em medicina foi desenvolvida por Donald W. Baker, um engenheiro da Universidade de Washington, nos EUA. Utilizando o princípio descoberto pelo físico alemão Johann Christian Doppler (1803-1853), em 1842. No chamado "efeito Doppler", a freqüência de uma onda emitida ou refletida por um objeto que se move a uma determinada velocidade sofre uma mudança (deslocamento) para mais ou para menos, proporcionalmente à velocidade. É o efeito Doppler, por exemplo, que explica porque o apito de um trem que se aproxima ou afasta da estação parece ficar mais grave ou mais agudo, respectivamente. Como o sangue é uma das coisas que se movem mais rapidamente dentro do corpo, o eco a um pulso de ultrassom também sofre um deslocamento de freqüência, que é proporcional à velocidade (fluxo) sangüíneo. Desta forma, obstruções, aneurismas, etc., podem ser detectados por um equipamento de ultrassom adaptado para medir ou visualizar a freqüência do sinal, além de sua amplitude. Baker inventou primeiramente um velocímetro baseado em ultrassom em modo A, que logo encontrou uma grande utilidade na avaliação funcional da vasculatura cerebral. Posteriormente, ele desenvolveu um sistema em modo B, capaz de mostrar as mudanças de freqüência Doppler na forma de gráficos com falsa cor. Esse equipamento, em larga utilização em todo o mundo, recebeu o nome de ecodoppler-ultrasonográfo.



Donald W. Baker e um colaborador, em 1967


Sinal Doppler da artéria carótida em modo B



Imagem bidimensional colorida Doppler em modo B,
mostrando uma estenose (estreitamento) da artéria
carótida

Imagens: History of the Ultrasound in Obstetrics. Kretz Museum of Ultrasonography. Ob-Gyn History of Ultrasound. Neurologia.it


A História da Neuroimagem
Por
Renato M.E. Sabbatini, PhD
Revista Cérebro & Mente, 20, Novembro 2003-Janeiro 2004
Copyright 2003 Renato M.E. Sabbatini

Parte 6 de 7
Publicado em 1.Mai.2003