Neurônios e Sinapses
A História de Sua Descoberta

Renato M.E. Sabbatini, PhD

O Advento do Microcosmo

Descobrindo o Neurônio e de seus Processos

A Doutrina Neuronal

A Descoberta da Sinapse

Transmissão Química

Para Saber Mais

O Autor

 

O Advento do Microcosmo

O segundo quartil do século XIX foi um período em que a ainda jovem neurociência estava pronta para uma sucessão impressionante de descobertas sobre o cérebro. Na Grã-Bretanha, Itália, Alemanha e França, estavam sendo perseguidas novas e excitantes linhas de pesquisa. No começo do século seguinte, elas começariam a convergir em direção a uma poderosa síntese do nosso conhecimento sobre este órgão tão complexo. Essas linhas eram: o localizacionismo cerebral, a eletrofisiologia e a anatomia microscópica.

Na primeira delas, a busca pelas localizações das funções nervosas e mentais recebeu um forte impulso por meio de Pierre Flourens, um eminente fisiologista francês, que, em sua tentativa de desautorizar Franz Joseph Gall e suas idéias equivocadas sobre localização, foi capaz de comprovar, entre 1825 a 1827, que as principais divisões anatômicas do cérebro, eram, realmente, responsáveis por funções bastante diferentes.

Paralelamente, Carlo Mateucci, Emil du Bois-Reymond, Julius Bernstein e seus seguidores, estavam usando nesta época métodos e equipamentos cada vez mais sofisticados, para investigar a natureza elétrica dos impulsos nervosos e o novo modelo do funcionamento do sistema nervoso. Este modelo tinha substituido, através das mãos capazes de Luigi Galvani, o velho pressuposto hidráulico, de inspiração vitalística, baseado no conceito dos chamados "espíritos animais", e que era respeitado desde os primeiros filósofos gregos, até os tempos de René Descartes, seu mais recente e notável defensor.

No entanto, nada era sabido até 1825 sobre a organização fina do sistema nervoso. As estruturas macroscópicas da medula espinhal, dos nervos e do encéfalo já eram bem conhecidas pelos anatomistas, mas os seus mecanismos e constituição internos permaneciam um mistério total. Tudo o que a anatomia sabia a esse respeito podia ser resumido praticamente pela distinção entre matéria cinzenta e matéria branca. Mais ainda: até por volta de 1870, os neuroanatomistas, mesmo armados com microscópios relativamente poderosos, ainda ignoravam que o sistema nervoso era constituído do que chamamos hoje de células. As estruturas que eles visualizavam eram denominadas de "glóbulos", ao invés de células, e suas funções eram em larga parte desconhecidas. Vale lembrar, inclusive, que o neurônio foi batizado com este nome apenas em 1891!

Foi aproximadamente na metade deste período que uma nova e, como veremos, revolucionária, área da pesquisa científica abriu-se para o estudo da anatomia fina do sistema nervoso, contribuido para a elucidação inicial destes aspectos tão desconhecidos. Ela foi possível graças à aplicação habilidosa de um novo e poderoso instrumento de investigação, o microscópio óptico composto. Juntamente com um vasto e crescente arsenal de técnicas histológicas e citológicas, desenvolvidas para a fixação, corte e coloração do frágil tecido neural, quase sem características visuais distintas, ele abriu as portas para a mais misteriosas de todas as biosferas, a do microcosmo, que agora passava a ser acessível à curiosidade dos cientistas...

As Novas Ferramentas

Jansen Microscope (1595)O primeiro microscópio foi construído em 1595 pelos holandeses Hans e Zacharias Jansen (1588-1631) (veja a figura à direita). Posteriormente, ele foi aperfeiçoado ao longo do século XVII, em vários países, tais como na Inglaterra, pelo físico Robert Hooke (1635-1703), e na Holanda, por Anton van Leeuwenhoek (1632-1723). Hooke, ao examinar fatias finas de cortiça, descobriu que ela tinha uma estrutura compartimentada, como uma colméia. Foi ele quem usou a palavra "célula" para descrever seus pequenos elementos constituintes. Hooke usou um microscópio bastante sofisticado para a época, constituido de uma ocular e uma objetiva, afixados em um tubo de madeira, uma platina para segurar o espécime em observação, e uma fonte concentrada de luz, composta de uma vela e um globo de vidro cheio de água para concentrar a luz. Com apenas 30x de aumento, Hooke foi capaz de produzir maravilhosas ilustrações de muitos objetos e seres do cotidiano, como uma pulga, a ponta de uma agulha, etc., as quais foram publicadas em 1667, em um pequeno livro que se tornou um clássico da ciência, intitulado Micrographia. A obra incendiou a imaginação de muitos de seus contemporâneos, inclusive van Leeuwenhoek. 

Van Leeuwenhoek aperfeiçoou uma linha de novos instrumentos, que apesar de terem apenas uma lente, eram dez vezes mais potentes do que o microscópio de Hooke. Desta forma, ele começou a descobrir um espantoso novo mundo, com coisas microscópicas que até então eram desconhecidas de todos, como protozoários e espermatozóides, ou que já pertenciam a um mundo conhecido, tais como folhas de plantas, insetos, etc. Em neurociência, Van Leeuwenhoek foi o primeiro a examinar seções de nervos óticos de carneiros e de vacas, em 1674. Ele descreveu magistralmente sua estrutura interna formada de fibras longitudinais, e manifestou-se perplexo com o fato de não ter conseguido determinar que eles eram tubos ocos, como mandava a teoria dominante da época, aperfeiçoada e tornada popular pelas obras de René Descartes.

 

Anton van Leeuwenhoek

 

Uma réplica dos priimitivos microscópios de uma lente feitos por van Leeuwenhoek

 

O microscópio de Robert Hooke

Desenhos por van Leeuwenhoek em 1719,
mostrando seções longitudinais e transversais de um nervo
 

Uma fatia fina de cortiça, com suas células, em um desenho por Robert Hooke, em seu livro Micrographia (capa mostrada ao lado)  
 

 
Infelizmente, estes microscópios eram ainda dispositivos rudimentares, de pouca potência, e que sofreram, ao longo do século XVIII de sérias restrições técnicas, que impediam que fossem úteis para a investigação científica de objetos naturais que fossem muito mais difíceis de visualizar, tais como bactérias e células de tecidos orgânicos animais. A tal ponto, que os microscópios da época eram considerados coisa de amadores, de diletantes que não tinham nada sério a contribuir. Os cientistas chegavam a evitar o seu uso, com medo de serem ridicularizados pelos colegas!

No começo do século XIX, mais precisamente em 1824, tudo começou a mudar rapidamente com a invenção dos primeiros microscópios com lentes acromáticas, com óptica mais complexa. Eles permitiam a visualização em maior resolução e clareza de imagem, de estruturas muito pequenas, e as células e seus componentes internos começaram a ser descobertos em grande quantidade, em muitas partes do organismo. Isso se deveu ao fato de que os novos e aperfeiçoados microscópios permitiam um maior aumento, sem as distorções causadas pela aberração esférica, e sem a decomposição de cores (aberração cromática) causada pelas lentes primitivas. Fontes de luz mais poderosas e regulares, e o desenvolvimento da mecânica de precisão, com botões de focalização e platinas de precisão, completavam a utilidade do microscópio como um instrumento científico.

Além disso, começaram a ser desenvolvidas também técnicas melhores para o endurecimento ("fixação") dos tecidos para posterior seccionamento. O primeiro fixador eficiente, o álcool etílico, foi descoberto em 1805 pelo naturalista alemão Johann Christian Reil (1759-1813).

 


Micrótomo rotativo (1905)
Quanto à obtenção de secções finas do material, que são essenciais para torná-las opticamente transparentes ao microscópio, inicialmente os histologistas as faziam manualmente, usando navalhas e outros tipos de lâminas muito afiadas. Posteriormente, por volta de 1790, foi inventado o primeiro aparelho mecânico com esta finalidade, denominado de micrótomo, por Charles Chevalier, que o aperfeiçoou consideravelmente em 1825. Ele consistia de um aparelho feito de madeira, com um berço para acomodar o espécime, e um guia liso de madeira, para apoiar o deslizamento da lâmina de corte de encontro à superfície do mesmo, de modo a proporcionar maior regularidade e menor espessura dos cortes. Finalmente, por volta de 1870, começaram a ser desenvolvidos os primeiros micrótomos mecânicos de precisão. Eles consistiam de uma platina fixa e lisa de metal, sobre a qual se afixava um bloco de parafina ou celoidina contendo o espécime a ser seccionado. Um suporte para a lâmina de corte podia então ser deslocado repetidamente sobre o mesmo, em alinhamento precisão com a platina. O movimento da lâmina era efetuado por um dispositivo rotatório ou alternante. Desta forma, conseguiu-se obter pela primeira vez o seccionamento serial, que foi muito importante para a neuroanatomia microscópica, por permitir o tracejamento dos axônios dos neurônios em sua extensa distribuição tridimensional pelas várias áreas do sistema nervoso.
Outro importante desenvolvimento da técnica histológica foi a coloração das seções, que adicionava cores diferenciais e opacidade ao tecido nervoso, normalmente translúcido e incolor. Embora pioneiros, como van Leeuwenhoek, tenham experimentado com um corante obtido do açafrão de em alguns de seus espécimes de músculo, antes de observá-los ao microscópio, as técnicas de coloração de tecidos foi desenvolvida bem mais tarde, apenas na segunda metade do século XIX. Como veremos adiuante, este foi um fator extremamente importante no desenvolvimento da microscopia do tecido neural, a qual, eventualmente, levou à concessão de dois prêmios Nobel, em 1906, os primeiros a serem concedidos em neurociência.

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O Autor

Prof. Renato M.E. Sabbatini, PhD é um neurocientista com doutorado em neurofisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e um estágio de pós-doutoramento como cientista convidado do Instituto Max Planck de Neurobiologia, de Munique, Alemanha. Ele é professor associado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), editor associado e coordenador da seção de História da Neurociência da revista Cérebro & Mente. Email: sabbatin@nib.unicamp.br


Revista Cérebro & Mente, Maio-Agosto de 2003
Copyright 2003 Renato M.E. Sabbatini
Parte 1 de 6
Publicado em 25.Mai.2003