A Descoberta da Bioeletricidade:

Galvani e Volta

O novo paradigma em neurofisiologia começou por uma série de observações simples feitas por muitos naturalistas com respeito à "eletricidade animal". Sabia-se, por exemplo, que certos animais, tais como a enguia e o torpedo (raia elétrica) eram capazes de dar choques quando tocados, os quais eram muito similares aos efeitos de outros choques elétricos (dados por um jarro de Leyden por exemplo). Então, estava claro que animais eram capazes de gerar eletricidade em seus corpos.

O anatomista italiano e médico Luigi Galvani (1737-1798) foi um dos primeiros a investigar experimentalmente o fenômeno chamado "bioeletrogênese". Em uma série de experimentos iniciados por volta de 1780, Galvani, trabalhando na Universidade da Bolonha, Itália, descobriu que a corrente elétrica liberada por um jarro de Leyden ou um gerador eletrostático rotatório causava a contração dos músculos na perna de um sapo e muitos outros animais, tanto ao aplicar a carga no músculo quanto no nervo.


Luigi Galvani e seus experimentos com pernas de sapos

Tentando provar que os raios nada mais eram do que uma faísca elétrica, como Benjamin Franklin tinha proposto, Galvani notou que os músculos se contraiam não apenas quando a iluminação aparecia, mas também quando elas estavam ausentes. A contração muscular aparecia quando a preparação do músculo era colocada em contato com dois metais diferentes, estivessem eles ao ar livre ou dentro do laboratório. Neste caso, nenhuma eletricidade externa estava sendo aplicada aos músculos, então Galvani chegou à conclusão que os músculos do sapo estavam gerando eletricidade por si próprios. Em outras palavras, para ele estava claro que certos tecidos orgânicos eram capazes de "eletricidade animal", um termo cunhado por ele, como um tipo de energia vital, a qual ele pensava que era similar, mas algo diferente da eletricidade "natural" gerada por máquinas ou em raios. Ele comparou o músculo a um pequeno jarro de Leyden, carregado com eletricidade. Quando uma carga externa era aplicada aos músculos, cargas elétricas opostas da superfície interna e externa se atrairiam, causando a contração muscular. Suas conclusões foram publicadas em 1791, em um ensaio intitulado "De Viribus Electricitatis in Motu Musculari Commentarius" (Comentário sobre o Efeito da Eletricidade no Movimento Muscular).

O médico italiano Alessandro Volta (1745-1827) repetiu os experimentos de Galvani na Universidade de Pávia, e obteve os mesmos resultados. Entretanto, ele não estava convencido da explicação dada por Galvani. Ele notou que apenas o contato dos eletrodos bimetálicos nos nervos que conduziam aos músculos da perna do sapo já era suficiente para causar uma contração. Portanto, o modelo e "jarro de Leyden" proposto por  Galvani não podia ser verdadeiro, e uma longa controvérsia foi iniciada. Volta propôs que a hipótese alternativa (e que realmente era a correta para os primeiros experimentos feitos por Galvani) era a de que a eletricidade externa era gerada pelo contato entre dois tipos de metal. Ele argumentou que o músculo do sapo funcionava somente como um detector de pequenas diferenças no potencial elétrico externo, um tipo de eletroscópio, digamos assim, e que nada evidenciava haver a "eletricidade animal" postulada por Galvani.

Tentando provar isso, ele construiu em 1800 a primeira pilha elétrica, ou bateria: uma série de discos de metal de dois tipos, separados por discos de papelão embebidos com soluções ácidas ou salgadas. Esta é a base de todas as baterias de célula úmida modernas, e foi uma descoberta científica tremendamente importante, porque foi o primeiro método encontrado para a geração de uma corrente elétrica contínua. Entretanto, com respeito aos experiementos biológicos de Galvani, Volta rejeitou efetivamente a idéia de um "fluido elétrico animal".

Posteriormente, Galvani e seu primo, Giovanni Aldini (1762-1834), foram capazes de demonstrar que a eletricidade animal estava presente quando apenas um metal era usado (uma piscina de mercúrio). Ele também conseguiu contrações ao tocar o músculo exposto de um sapo com o nervo de outro. Desta forma, ele foi o primeiro a estabelecer com segurança a existência da eletricidade gerada organicamente. No entanto, ele publicou isto somente em 1794, no suplemento de um livro anônimo intitulado "Dell'uso e Dell'attività Dell'arco Conduttore Nella Contrazione dei Muscoli" ("Sobre o Uso e Atividade do Arco Condutivo na Contração dos Músculos"). Em todos estes experimentos feitos por Galvani, Volta sempre tentava refutar que eles seriam demonstrações da existência da eletricidade animal, usando a sua teoria da geração externa da eletricidade. A evidência experimental definitiva para essa dúvida foi proporcionada pelo naturalista alemão Alexander von Humboldt , in 1797, que foi capaz de descobrir dois fenômenos separados e genuínos: eletricidade bimetálica e eletricidadee animal e apontar onde Galvani e Volta estavam certos e onde eles estavam errados.

O debate Galvani versus Volta foi um dos mais interessantes episódios na história da ciência, e foi destituído de animosidade pessoal porque ambos eram cavalheirescos e amigos, e também porque tinham princípios científicos elevados (entretanto, o mesmo não poderia ser dito sobre seus colaboradores, que se organizaram ruidosamente para apoiar um ou outro, e se digladiaram muitas vezes em público e nas academias). Na verdade, Volta, que generosamente cunhou o termo galvanismo, escreveu que o trabalho de Galvani "contém uma das mais belas e mais surpreendentes descobertas". Por outor lado, o nome de Volta originou os termos "voltaico", "volt", etc.

Ao demonstrar os seus trabalhos com a pilha voltaica perante a Academia Francesa de Ciência, ele foi agraciado com o título de conde da Lombardia por Napoleão Bonaparte, que tinha tomado militarmente aquela parte da Itália (Savóia).

Os notáveis experimentos de Galvani ajudaram a estabelecer as bases para o estudo biológico da neurofisiologia e neurologia. A mudança de paradigma foi completa: os nervos não eram tubos de água ou canais, como Descartes e seus contemporâneos pensavam, mas condutores elétricos. A informação no sistema nervoso era transmitida pela eletricidade gerada diretamente pelo tecido orgânico.

Havia sido rompido a barreira para o início dos estudos científicos sobre a condução nervosa.


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A Descoberta da Bioeletricidade
Renato M.E. Sabbatini
Cérebro & Mente 2(6), Junho/Setembro, 1998

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Núcleo de Informática Biomédica