Renato M.E. Sabbatini, PhD
Nas primeiras décadas do século XIX, a nascente ciência da neurofisiologia estava rompendo fronteiras de forma fascinante. Era a primeira vez na história da ciência que surgia uma cooperação íntima entre a física e a biologia. Ela era necessária, não somente porque a biologia estava tentanto interpretar os fenômenos da função neural à luz dos recentes conhecimentos fornecidos pela física, mas também porque ela estava usando os mesmos instrumentos de medida, dispositivos e aparelhos.
O conhecimento aplicado que tinha sido reunido pelos físicos experimentais nos campos da eletricidade, da ótica e da mecância estava começando a trazer grandes contribuições para a fisiologia. Muitas vezes, no entanto, os fisiologistas que estavam conduzindo experimentos pioneiros eram forçados a inventar ou adaptar instrumentos já existentes para obedecer as exigências do trabalho com os tecidos vivos, capazes de gerar correntes e voltagens extremamente fracas, de uma magnitude tal que os físicos nunca tinham estudado antes.
Em primeiro lugar, os fisiologistas necessitavam de fontes estáveis e confiáveis de corrente elétrica, de modo a estimular os nervos e músculos de suas preparações. Quando Luigi Galvani começou seus experimentos pioneiros, existia apenas um pequeno número de técnicas à sua disposição: jarros de Leyden, geradores eletrostáticos e eletricidade natural (ou seja, raios !).
O gerador eletrostático era feito de um disco de vidro vertical ou horizontal, que podia ser girado rapidamente usando uma manivela manual, ligada a uma polia. Uma escova metálica, em contato com o disco, coletava cargas elétricas, criadas pelo atrito. Duas bolas metálicas conectadas aos pólos eram então usadas para transferir essa carga para um jarro de Leyden.
A garrafa, ou jarro, de Leyden também era
feita de vidro e forrada internamente com folha fina de estanho, e um pino de metal com uma bola, inserido através
de uma rolha isolante. Ela funcionava como um condensador elétrico, e era usada para armazenar cargas elétricas,
bem como para ministrar choques elétricos aos tecidos que se queria estimular. Infelizmente, a quantidade
de corrente elétrica não era controlável e quantificável, portanto as garrafas de Leyden
eram pouco confiáveis quando se queria fazer experimentos replicáveis.
A invenção definitiva se originou diretamente da disputa cientifica de Galvani com seu colega Alessandro Volta. Volta interpretou corretamente que as rãs
de Galvani contraiam seus músculos quando estavam penduradas por ganchos de cobre de grades de ferro, porque
a junção entre dois metais diferentes funcionava como um dispositivo de geração de
eletricidade. Volta montou então um dispositivo, ao qual chamou de "pilha ", constituido
de uma série de discos de prata e de zindo alternadamente, separados entre si por discos de papelão
embebidos em água com sal. Uma corrente elétrica se produzia quando o disco de prata no topo da pilha
era conectado por um fio ao último disco de zinco na parte de baixo.
A bateria de células voltaicas deu inicio a uma revolução abrangente
nos anos que se sucederam, não apenas na física, mas também na fisiologia. Controlando cuidadosamente
a área e o material de suas partes constituintes, a concentração das substâncias químicas
e o número de discos na pilha, voltagens conhecidas e precisas podiam ser ministradas aos tecidos que se
queria estimular. Claude
Bernard, o famoso fisiologista francês,
chegou a fabricar engenhosas "pinças elétricas", que usava para segurar e tocar nervos
delicados, estimulando-os, ao mesmo tempo.
Posteriormente, os fisiologistas tiveram que inventar interruptores mecânicos especiais, de modo a aplicar pulsos de corrente elétrica aos nervos e músculos, em instantes precisamente determinados, e com durações conhecidas e muito curtas. Normalmente esses interruptores eram feitos de piscinas de mercúrio, bastonetes pontiagudos de metal e botões acionados por molas fortes (como o interruptor de Du Bois-Reymond mostrado à direita). Quando o experimento exigia estimulações repetidas regularmente de forma precisa, um disco giratório era usado para acionar o interruptor a instantes precisos, como se pode ver pelo comutador de Mateucci, mostrado à esquerda.
As correntes e potenciais elétricos gerados pelos tecidos biológicos são muito pequenos, da ordem de micro- ou milivolts. Portanto, chega a ser espantoso constatar como que os aparelhos primitivos usados pelos fisiologistas no século XIX eram capazes de registrar variações tão minúsculas. Em uma certa ocasião, um fisiologista foi capaz de discernir meros 10 mV de alteração positiva na "corrente de ação do nervo", que mesmo hoje é difícil de se conseguir usando modernos amplificadores eletrônicos e osciloscópios.
O primeiro dispositivo físico a ser usado para detectar a bioeletricidade foi o eletroscópio de palheta, pelo físico italiano Giovanni Mateucci. Ele consistia em um vaso de vidro isolado eletricamente, que continha em seu interior duas finas palhetas feitas de ouro laminado, conectadas a um bastão metálico formando um ângulo entre si. Um pequeno potencial elétrico aplicado ao bastão carregava as palhetas com a mesma quantidade de carga elétrica, fazendo que elas se repelissem entre si. Como resultado, o ângulo entre as palhetas aumentava. No entanto o eletroscópio de palheta não permitia medidas precisas.
Um
melhor instrumento de medida foi conseguido apenas por volta de 1820, com o galvanômetro (cujo nome, evidentemente,
homenageava Galvani). Ele utilizava o princípio do eletromagnetismo, descoberto por Oersted e Faraday. Consistia
de uma bobina enrolada de fio isolado de obre, em volta de um magneto colado à uma agulha. Ao se passar
uma corrente elétrica pela bobina, um campo eletromagnético era provocado, o qual interagia com o
campo magnético do ímã e fazendo-o girar em torno de um eixo. O valor do desvio da agulha
era medido sobre uma escala impressa, permitindo assim uma medida mais exata da corrente ou potencial elétrico.
Quanto maior fosse o magneto e a bobina, mas sensível era o instrumento. O cientista suiço-alemão
Emil Du Bois-Reymond desenvolveu em 1840 um galvanômetro muito sensível, e que foi um dos melhores
instrumentos de medida a serem usados por muitas décadas em experimentos neurofisiológicos. Seu sensível
dispositivo necessitava quase 24,000 voltas de fio em sua bobina, com mais de 5 km de comprimento!
Posteriormente no mesmo século, registros temporais de fenômenos fisiológicos se tornaram possível com o quimógrafo de tambor. A agulha do galvanômetro era colocada em contato com uma alça de papel recoberta com uma fina camada de negro de fumo, a qual era esticada sobre um cilindro de metal. Um mecanismo de engrenagens de relojoaria, muito preciso, girava o cilindro a qualquer velocidade que se desejasse, e os movimentos da pena do galvanômetro riscavam a superfície do negro de fumo, expondo um traçado da intensidade em função do tempo. Fenômenos mecânicos, como a contração de um músculo, movimentos respiratórios e pressão sangüínea, podiam ser também registrados em função do tempo, através de engenhosas montagens de dispositivos complicados, feitos de alavancas, eixos, membranas, molas e fios. O eixo do tempo era calibrado e medido usando-se diapasões eletromagnéticos conectados a penas inscritoras.
Até o começo do século XX, estas eram as ferramentas básicas do eletrofisiologista. O galvanômetro foi aperfeiçoado ainda mais em 1901 pelo fisiologista holandês Willem Einthoven, com o objetivo de registrar as variações minúsculas observadas dos potenciais elétricos do músculo cardíaco. Este "galvanômetro de corda ", como era chamado, funcionava da seguinte maneira: um finissimo filamento metálico revestido de prata era colocado entre os polos de um poderoso magneto. Uma das pontas do mesmo era conectada aos eletrodos de registro. A medida que as variações elétricas recolhidas nos eletrodos chegavam ao filamento, o mesmo oscilava de um lado para o outro. Um raio de luz era incidido sobre a superfície prateada do filamento, de tal maneira que o ângulo formado com o mesmo fosse ampliado muitas vezes, e caindo sobre a janela de uma escala visualizada com uma lente de aumento. Também se desenvolvou um galvanômetro de corda registrado: o feixe de luz refletido pelo filamento caia sobre uma tira de papel fotográfico em movimento, dando origem ao eixo de tempo do fenômeno bioelétrico. O primeiro eletrocardiógrafo de uso prático foi desenvolvido por Einthoven, usando tal geringonça.
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As armas definitivas dos eletrofisiologias vieram
a ser o oscilógrafo baseado no tubo de raios catódicos, e o amplificador eletrônico a válvulas,
ambos inventados na virada do século. Max Dieckmann demonstrou os princípios de funcionamento do
tubo de raios catódicos (CRT, em inglês), na Alemanha, em 1906, ao passo que o inglês A. A.
Campbell Swinton desenvolvou o conceito em um sistema eletrônico prático de registro de variações
elétricas sobre uma tela fosforescente, em função do tempo. No CRT, um fio incandescente é
o catodo de um tubo evacuado, o qual dá origem a um feixe de elétrons. Esse feixe pode ser desviado
ao passar entre dois conjuntos de placas, um par disposto horizontalmente e outro verticalmente. A deflexão
sofrida pelo feixe de elétrons na vertical é proporcional à voltagem aplicada nas placas horizontais,
ao passo que as placas verticais recebem uma variação constante de voltagem, que fazem com que o
feixe se desloque da esquerda para a direita, na horizontal, proporcionando o eixo do tempo. Os fisiologistas norte-americanos
e nobelistas Erlanger e Gasser utilizaram amplamente essas maravilhas da tecnologia eletrônica, para realizar
um grande número de estudos elegantes e pioneiros sobre a condução nervosa. Mas estes equipamentos
serão tema de um artigo posterior nesta série.
O estudo
íntimo das minúsculas estruturas dos nervos e neurônios se tornou possível com a invenção
do microscópio. Ele é uma ferramenta essencial dos neurofisiologistas, pois permite correlacionar
estrutura e função. Microscópios bastante primitivos foram desenvolvidos por Anton van Leeuwenhoek,
na Holanda, e por Robert Hooke, na Inglaterra, sendo que ambos estudaram a estrutura microscópica dos nervos.
Entretanto, foi apenas com a invenção do microscópio composto (que usa diversas lentes para
conseguir uma maior potência) no século XVIII é que os anatomistas e fisiologistas foram capazes
de explorar em grande detalhe o sistema nervoso, e descobrir coisas como o axônio, os dendritos, a placa
neuromuscular, etc.
Novos métodos de corar as células nervosas e seus processos, como as desenvolvidas por Santiago Ramon y Cajál e Camilo Golgi, no final do século, foram capazes de mostrar em detalhe precioso a estrutura fina do tecido nervoso e sua organização ímpar no organismo.
Foi então que nasceu a moderna doutrina
neuronal.
Créditos das imagens: Museum of Physics of the University of Pavia, The Gemmary Collection, The University of Toronto Museum of Psychological Instruments.
O Campo ProgridePara Saber Mais
A Descoberta da Eletricidade
Renato M.E. Sabbatini
Revista Cérebro & Mente 2(6),
Junho/Agosto 1998
Copyright (c) 1998 Universidade Estadual de Campinas,
Brasil
Núcleo de Informática
Biomédica