Neurônios e Sinapses
A História de Sua Descoberta

Renato M.E. Sabbatini, PhD

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IV. A Descoberta da Sinapse

Tendo-se estabelecido que os neurônios não se fundem ao nível de suas ramificações, uma questão persistente de pesquisa passou a ser importante. Como é o contato entre os neurônios? Como ocorre a transmissão de um impulso elétrico entre dois neurônios? A "junção neuronal", como era denominada então, era muito pequena para ser vista pelos microscópios da época, e assim não era possivel documentar a fenda que certamente existia no ponto de contato. De fato, a prova morfológica definitiva de sua existência ocorreu apenas em 1954, através do trabalho de George Palade, Eduardo de Robertis e George Palay, que usaram o microscópio eletrônico e novas técnicas de ultramicrotomia e coloração para conseguir visualizar a ultraestrutura sináptica, graças aos emormes aumentos conseguidos com esses equipamentos. Eles foram capazes de demonstrar claramente a existência dos elementos pré-sinápticos e pós-sinápticos distintos, bem como a fenda sináptica e as vesículas pré-sinápticas, que mais tarde comprovou-se conterem as moléculas de neurotransmissores.

O problema da natureza da transmissão de um neurônio para outro também foi um ponto importante de consideração e pesquisa entre os neurofisiologistas do começo do século XX. Muitos defendiam a idéia de que a transmissão era elétrica, da mesma forma como a propagação ao longo da célula. Em 1846, o grande fisiologista Emil Du Bois-Reymond, o descobridor do potencial de ação, tinha proposto que somente duas hipóteses poderiam ser consideradas para a transmissão entre neurônios: elétrica ou química. Ele não tinha nenhum apoio experimental para esta especulação, de modo que ela acabou sendo esquecida. Muitos anos depois, entretanto, ao renascer o interesse no mecanismo sináptico, a hipótese de transmissão elétrica parecia fazer mais sentido, (alguns cientistas chegaram a imaginar faíscas elétricas microscópicas atravessando a fenda sináptica!), pois configurava uma imagem mais simples do sistema nervoso. Infelizmente para esta hipótese, havia três pontos de evidência que a contradiziam:

Muitos dos experimentos que forneceram estes dados foram realizados no laboratório do grande fisiologista inglês Sir Charles S. Sherrington (1852-1952), que investigou no final dos anos 1890s a fisiologia dos reflexos motores simples e complexos, desta forma complementando a linha de raciocínio do "pai" da fisiologia, Claude Bernard (1813-1878), que tinha descoberto o papel integrativo do sistema nervoso no organismo. Sherrington argumentou que a junção entre os neurônios era a via final da regulação da transmissão no sistema nervoso, e, portanto, tinha um papel supremo na integração de suas funções. Ele foi o responsável por dar um nome mais curto a esta junção, "sinapse", que, em Grego, significa "prender".

 


Otto Loewi


Sir Henry Dale


Sir Charles S. Sherrington

O brilhante trabalho de Sherrington (que também ganhou um prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, em 1921), esclareceu numerosas propriedades dos arcos reflexos em nível espinhal, e de como eles são influenciados e modulados por estruturas cerebrais em nível mais alto, tal como no cerebelo e no tronco cerebral. Ele foi um dos primeiros a descobrir as interrelações entre a excitação e inibição centrais e seu papel fundamental na integração das atividades do sistema nervoso. Como conseqüência, ele propôs a existência de sinapses de dois tipos, excitatórias e inibitórias, o que foi um conceito inovador. Ele só pode ser comprovado experimentalmente duas décadas depois, como veremos. Seu trabalho foi imortalizado em um dos mais clássicos textos da neurofisiologia moderna, "The Integrative Action of the Nervous System", publicado pela primeira vez em 1906.

O mesmo conceito de excitação e inibição aparecia novamente no estudo do Sistema Nervoso Autônomo (SNA). Ele é a parte do sistema nervoso responsável pelo controle de órgãos viscerais, como o coração, vasos sangüíneos, o sistema gastrointestinal, o sistema urinário, as glândulas exócrinas, e assim por diante. Desde o século XIX, os neurofisiologistas e neuroanatomistas vinham estudando detalhadamente como o SNA se distribuia no organismo e quais eram suas funções básicas.

Por exemplo, eles descobriram que a força de contração dos músculos cardíacos (que também são do tipo estriado) e a freqüência das batidas cardíacas podiam ser alteradas em direções opostas conforme a ação de duas divisões do SNA. A força de contração e a freqüência cardíaca eram aumentada quando a divisão simpática era ativado (por exemplo, estimulando-se eletricamente os nervos ganglionares que inervam o coração). Elas eram diminuídas, no entando, se a estimulação fosse feita no nervo vago, que carrega a divisão parassimpática do SNA.

Como o órgão-alvo (o tecido muscular cardíaco) desses dois sistemas nervosos era o mesmo, a conclusão lógica inescapável era que deveriam existir dois tipos de influências sobre as mesmas sinapses: excitatórias e inibitórias. O grande mistério, portanto, era imaginar como uma transmissão elétrica no mesmo ponto poderia conseguir dois efeitos totalmente opostos. A solução, é claro, estava novamente em uma sinapse química. Uma forte evidência a seu favor seria a descoberta da natureza desses dois elementos químicos distintos, através do íestudo de substâncias que imitassem os efeitos da ativação do SNA neste órgão-alvo.

Esta evidência já era considerável. Por exemplo, Henry Halett Dale (1865-1968), um fisiologista inglês, tinha investigado em 1914 as ações de uma substância ativa no ergot, que era extraído de um fungo que infectava grãos como o trigo, e que provocava fortissimos efeitos sobre o sistema nervoso autônomo, podendo levar à morte. Por acidente, ele descobriu que esta substância revertia, no coração, os efeitos da adrenalina, uma substância extraída da medula da glândula adrenal, e que provocava efeitos aceleredores sobre o coração, conforme tinha sido determinado pelos estudos de outro fisiologista inglês, T.R, Elliot, em 1904. Estudando mais intimamente os efeitos dessa substância misteriosa do ergot em preparações de coração, ele determinou que ela era idêntica à uma molécula conhecida como acetilcolina, e que tinha uma ação similar à conseguida por estimulação do sistema parassimpático.

Todas estas evidências convenceram os neurocientistas no começo do século XX que muitas das sinapses eram de natureza química, e que a adrenalina e a acetilcolina pareciam ser bons candidatos para os primeiros transmissores a serem identificados. Entretanto, a prova fundamental que faltava para isso veio apenas em 1921, com os experimentos cruciais realizados por Otto Loewi.


Neurônios e Sinapses: A História de Sua Descoberta
Por Renato M.E. Sabbatini, PhD
Revista Cérebro & Mente, 17, Mai-Ago de 2003
Copyright 2003 Renato M.E. Sabbatini

Parte 4 de 6
Publicado em 23.Fev.2003