Espíritos, Cérebros e Mentes.
A Evolução Histórica dos Conceitos Sobre a Mente

Ramon M. Cosenza, MD, PhD

Atualmente, o homem comum sabe que o cérebro é o órgão responsável pelo comportamento e pelas faculdades mentais. As pessoas cultas também sabem que fenômenos químicos e elétricos estão por trás do funcionamento do sistema nervoso. No entanto, esses conhecimentos são relativamente recentes e durante muitos séculos as crenças sobre a maneira de funcionar do cérebro foram radicalmente diferentes das que professamos hoje.

Há muito tempo os homens ligam o cérebro com as funções mentais. Crânios com perfurações feitas em vida, com sinais de cicatrização, foram encontrados em sítios que datam de até 10.000 anos atrás. Muito provavelmente, essas trepanações eram feitas com o intuito de possibilitar a saída de maus espíritos, que estariam atormentando o cérebro [4].

Essa ligação do cérebro às funções mentais era natural, pois os homens primitivos em todas as eras podiam observar que fortes traumas cranianos induziam a perda da consciência e da memória, e até convulsões, que levavam a alterações substanciais da percepção e do comportamento.

A maior e mais importante prova documental desse conhecimento foi extraido do famoso Papiro Cirúrgico de Edwin Smith [6], que foi escrito no Egito por volta de 1.600 AC. Ele contém as primeiras descrições conhecidas das suturas cranianas, da superfície externa do cérebro, do fluido cerebroespinal e das pulsações intracranianas. O autor do papiro descreve 30 casos clínicos de trauma cranioencefálico e da medula, notando como as várias injúrias cerebrais eram associadas a mudanças da função de outras partes do corpo, especialmente os membros inferiores, tais como contraturas hemiplégicas, paralisia, incontinência urinária, priapismo e emissão seminal associada a trauma da coluna.

Trepanação realizada em um crânio na América do Sul (astecas)

Trecho do Papiro Cirúrgico de Edwin Smith

Cérebro e Mente na Antiguidade

Na cultura ocidental, Alcmaeon de Crotona (Sec. V A.C.) foi possivelmente o primeiro a localizar no cérebro a sede das sensações. Para ele, os nervos ópticos, que seriam ocos, levavam a informação ao cérebro, onde cada modalidade sensorial teria seu próprio território de localização.

 Ainda no século V A.C., Demócrito, Diógenes, Platão e Teófrasto punham no cérebro o comando das atividades corporais. Também entre os gregos, Herófilo (335-280 A.C.) dissecou  e escreveu sobre o cérebro e foi o primeiro a descrever suas cavidades, os ventrículos cerebrais, que ele associou com as funções mentais. Essa idéia, como veremos, teve enorme importância na “neurofisiologia”  dos séculos que se seguiram.

Hipócrates (460-379 AC) acreditava que o cérebro era a sede da mente. Ele escreveu:

"Deveria ser sabido que ele é a fonte do nosso prazer, alegria, riso e diversão, assim como nosso pesar, dor, ansiedade e lágrimas, e nenhum outro que não o cérebro. É especificamente o órgão que nos habilita a pensar, ver e ouvir, a distingüir o feio do belo, o mau do bom, o prazer do desprazer. É o cérebro também que é a sede da loucura e do delírio, dos medos e sustos que nos tomam, muitas vezes à noite, mas ás vezes também de dia; é onde jaz a causa da insônia e do sonambulismo, dos pensamentos que não ocorrerão, deveres esquecidos e excentricidades".

É uma espantosa e clarividente declaração, tão moderna quanto a que qualquer neurocientista atual poderia fazer. É de se surpreender, portanto, que os filósofos e médicos posteriores a Hipócrates, por muitos e muitos séculos, tenham regredido notavelmente, ao deslocar a sede da mente para o coração, como veremos a seguir.
 

 


Hipócrates


Aristóteles


Platão


Alcmeon


Demócrito

Aristóteles (384-322 A.C.), divergiu de seus contemporâneos e afirmava que o coração era o órgão do pensamento, das percepções e do sentimento, enquanto o cérebro seria importante para a manutenção da temperatura corporal, agindo como um agente refrigerador. Segundo ele, os nutrientes subiriam pelos vasos sangüíneos e uma parte deles, uma espécie de refugo, seria resfriada no cérebro, transformando-se em líquido, de uma forma análoga a que ocorre com a água na natureza, quando se forma a chuva.

Aristóteles generalizou erradamente uma noção bastante antiga em todas as civilizações, de que pelo menos a sede das emoções seria o coração. Até hoje somos influenciados por essa noção, quando nos referimos ao símbolo do amor como sendo um coração, quando dizemos que estamos de "coração partido" ou de "coração pesado", que gostamos de algo "de coração", ou até que "decoramos" alguma coisa (a palavra vem de "saber de cór", do latim para coração). Isso, provavelmente, deve-se ao fato que a ativação do sistema nervoso autônomo simpático, que ocorre na expressão das emoções, altera de forma sensível a freqüencia cardíaca e força das contrações. A associação do efeito à causa em sua expressão periférica gerou a interpretação errônea, a qual os filósofos naturais tentaram "explicar" cientificamente.

Galeno (130-200) rejeitou as idéias de Aristóteles, argumentando que não tinha sentido acreditar que o cérebro tivesse uma função de esfriar as paixões do coração. Galeno, foi um intenso dissecador (o animal de escolha era o boi) e prestou muita atenção às meninges e às cavidades encefálicas e menos atenção ao cérebro em si. Naquela época, trabalhando com material não fixado, era natural que os ventrículos chamassem muita atenção, pois o encéfalo aparecia apenas como uma geleia amorfa.


Galeno

Para Galeno, os nutrientes absorvidos nos intestinos passavam ao fígado, onde era produzido o espírito natural. Este era levado ao coração onde, no ventrículo esquerdo, transformava-se em espírito vital, que pelas carótidas se dirigia a uma rede de vasos na base do crânio, a rete mirabile. Aí misturava-se com o ar inspirado, formando o espírito animal, que era armazenado nos ventrículos cerebrais e deles difundia-se ao  cérebro. Este espírito animal, vindo da mistura de um líquido e do ar, era considerado como a essência da vida e fonte das faculdades intelectuais. Quando necessário, ele viajava através dos nervos, considerados estruturas ocas, para provocar movimentos ou mediar as sensações.

Para Galeno, o material processado na rete mirabile e nos ventrículos produzia uma certa quantidade de refugo, parte líquido, parte gasoso. A parte gasosa escapava pelas suturas entre os ossos e pelos seios aéreos do crânio, sem ser percebida pelos sentidos. A parte líquida escorria dos ventrículos anteriores para as lâminas crivosas dos ossos etmóides, ou então do terceiro ventrículo para a fossa pituitária. Daí chegava à cavidade nasal e era descartada como flegma, ou muco.

Os Ventrículos e o Conceito de Mente

Nemésio (320 D.C.), bispo de Emesia, na atual Síria, tomou as idéias de Galeno e baseou nos ventrículos as faculdades intelectuais. Em seu livro “Da Natureza do Homem”, onde ele tratava da fisiologia com base na medicina grega, consta que a alma não tem uma sede, mas as funções da mente, sim. Os ventrículos cerebrais, seriam responsáveis pelas operações mentais, desde a sensação até a memorização. O primeiro par de ventrículos seria  sede  do “senso comum”. Eles recebiam as informações vindas dos órgãos sensitivos e ali se dava a análise sensorial. As imagens formadas eram levadas ao ventrículo médio, sede da razão, do pensamento e do juízo. Só então entrava em ação o último ventrículo, sede da memória. Até a Idade Média, as figuras representando o cérebro mostram com destaque os ventrículos cerebrais.

A idéia de que espíritos circulavam pelos ventrículos, favorecida pela Igreja, foi predominante até a época do Renascimento. Em um livro do século XIII, denominado “Da Propriedade das Coisas”, uma compilação feita por Bartolomeu, o Inglês, afirma que “a cavidade anterior é macia e úmida para facilitar a associação das percepções sensoriais e a imaginação. A cavidade intermediária deve também ser quente, porque o pensamento é um processo de separação do puro do impuro, comparável à digestão e sabe-se que o calor é o principal fator na digestão. A cavidade posterior, no entanto é um local para armazenamento a frio, onde uma atmosfera seca e isenta de calor permite o armazenamento de bens. Por isso o cerebelo é mais duro, menos medular e gasoso que o resto do encéfalo”.


Leonardo da Vinci

Durante muitos séculos, portanto, falava-se em três ventrículos cerebrais, sendo os ventrículos laterais considerados em conjunto. Leonardo Da Vinci (1472-1519) que tinha o hábito da dissecação,  mostra nos seus desenhos os ventrículos laterais separados e não como um ventrículo único. Da Vinci acreditava que as sensações deveriam localizar-se no ventrículo médio (IIIo. ventrículo) porque para suas imediações cmnverge uma grande quantidade dos nervos cranianos.
 
 


 

Os ventrículos cerebrais desenhados por
Leonardo Da Vinci


Os ventrículos cerebrais, como aparecem no
livro de Hieronymus Brunschwig, publicado em
1525. Notar que as sensações visuais, gustativas,
lfatórias e auditivas são levadas ao ventrículo anterior.
Só no século XVI, Andreas Vesalius (1514-1564), autor do monumental tratado de anatomia “De Humani Corporis Fabrica”, rompe com a teoria da localização ventricular dos processos mentais argumentando que outros mamíferos (como o asno) têm a mesma organização anatômica e não possuem as mesmas capacidades intelectuais. Contudo, ele continuou a acreditar que os ventrículos cerebrais eram um local de armazenamento dos espíritos animais, de onde eles partiam para, através dos nervos, atingir os órgão sensoriais ou de movimento.
 
 


Andreas Vesalius


Capa de Humanis Corporis Fabrica


Ilustração do cérebro por Vesalius

Descartes, Cérebro e Mente

No século XVII os espíritos ainda dominavam as funções mentais. Nesta época René Descartes (1596-1650) escolheu  o corpo pineal não propriamente como a sede da alma, mas como o local da sua atividade. A pineal foi escolhida por ser um órgão ímpar, ao contrário das outras estruturas cerebrais, que são bilaterais. A neurofisiologia de Descartes, é bastante independente da neuroanatomia, que ele deliberadamente ignorava e é baseada nos espíritos animais e nos poros e vias pelos quais eles fluem para exercer suas ações [5]. Segundo ele, “as partículas mais rápidas e ativas do sangue” eram levadas pelas artérias do coração para o cérebro, onde se convertiam num gás ou vento extremamente sutil, ou uma chama muito pura e ativa, constituindo o “espírito animal”. As artérias deveriam reunir-se em torno de uma glândula situada no centro do cérebro: a pineal.

Descartes imaginava que filamentos existentes nos nervos (que seriam tubos) poderiam operar como válvulas, abrindo poros que deixariam fluir os espíritos animais. Uma estimulação na pele, por exemplo, agiria sobre esses filamentos, provocando uma contração como resposta reflexa. Do cérebro os espíritos animais viajariam através dos nervos até o músculos, que seriam inflados, provocando o movimento. Esse seria o mecanismo para os atos involuntários.
 
 

Um reflexo segundo a fisiologia de Descartes. O fogo desencadeia movimentos dos espíritos animais através de nervos ocos. Esse deslocamento abre poros no ventrículo (F), deixando fluir espíritos que irão então dilatar o músculos da perna, provocando o seu afastamento.

Ilustração do livro de René Descartes, De Homine, publicado em 1662. As informações visuais são levados ao cérebro por nervos ópticos ocos. Daí elas chegam à pineal, que regula o fluxo do espíritos animais através dos nervos. Os espíritos viajarão até os músculos do braço, provocando um movimento.

As estimulações periféricas teriam o poder de abrir poros existentes no interior do cérebro e os espíritos seriam conduzidos daí até a glândula pineal, na superfície da qual haveria um completo mapa sensorial e motor. A vontade estaria sob o controle da pineal, que poderia regular o fluxo dos espíritos animais para os diferentes nervos.
 
 
 


O sono e a vigília, segundo Descartes (1662), dependeria do fluxo dos espíritos animais no cérebro, regulado pela pineal (H).  No desenho superior há pouco fluxo dos espíritos e o cérebro encontra-se flácido, durante o sono. O desenho inferior representa o estado de vigília, quando há grande influxo dos espíritos animais e a matéria cerebral está distendida.
A diversidade das sensações seriam decorrentes das diversas maneiras pelas quais os poros seriam abertos. Uma estimulação muito forte, por exemplo, daria origem à dor. Uma estimulação uniforme de muitas fibras na pele, levaria à sensação de superfície lisa. Já a estimulação desigual seria correspondente a uma superfície rugosa.

Ainda segundo Descartes, os espíritos animais podiam dilatar o cérebro, como o vento age sobre as velas de um embarcação,  despertando-o e permitindo a recepção das informações sensoriais. A ausência, ou pouca intensidade dos espíritos animais, levaria ao sono e ao sonho. Os espíritos animais serviam também para sustentar seu esquema para uma localização cerebral de movimentos e sensações. Os diferentes temperamentos e as habilidades naturais de cada pessoa corresponderiam às diferenças em número, tamanho, forma e movimento dos espíritos animais.

Bioeletricidade e o Dogma Neuronal

A idéia de que “espíritos animais” percorriam os nervos, que tinha origem nos gregos,  permaneceu corrente até o Século XVIII, quando ficou demonstrada a natureza elétrica na condução nervosa, destacando-se para isso o trabalho de Luigi Galvani (1737-1798) e,  já no século seguinte, o de Emil du Bois-Reymond (1818-1896) [5]. Du Bois-Reymond realizou seus estudos sobre transmissão nervosa  na década de 1840 e na década de 1870 propôs que os órgãos efetuadores seriam excitados pelos nervos através de corrente elétrica, ou de substâncias químicas liberadas pelas terminações nervosas.
 
 

Luigi Galvani

Emil Du Bois-Reymond

Quanto à importância do tecido cerebral para as funções nervosas, os conhecimentos fundamentais também se desenvolveram no século XIX. Theodor Schwann (1810-1882), que descreveu a bainha de mielina, foi quem primeiro propôs que todo o corpo seria formado de células. Sua teoria celular teve ampla aceitação para todos os tecidos, com exceção do sistema nervoso, onde se acreditava que as células eram contínuas, formando um grande sincício. Somente com a descoberta das técnicas de impregnação das estruturas nervosas pela prata (método de Golgi) foi possível uma observação mais acurada, resultando nos trabalhos de Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), que já em 1889 argumentava que as células nervosas eram elementos isolados. Em 1891 Wilhelm von Waldeyer (1836-1921) cunhou o termo “neurônio” para designar a unidade anatômica e funcional do sistema nervoso.

Finalmente, veio a descoberta, por Charles Scott Sherrington (1857-1952), dos espaços existentes nas junções entre células nervosas ou entre estas e as células musculares. Sherrington chamou essas estruturas de “sinapses”.
 

 


Theodor Schwann


Santiago Ramón y Cajal


Camilo Golgi


Charles Sherrington


Wilhelm Waldeyer

Como se vê, há menos de três séculos o avanço do conhecimento permitiu que nossos cérebros e mentes deixassem de ser assombrados pelos espíritos gerados por nossa ignorância.
 

Bibliografia

  1. Blakemore, Colin  Mechanics of the Mind. Cambridge, Cambridge University Press, 1977.
  2. Finger, Stanley  Origins of  Neuroscience, A History of Explorations into Brain Function. New York, Oxford University Press, 1994.
  3. Milestones in Neuroscience Research.
  4. Sabbatini, R.M.E.: A História da Psicocirurgia. Revista Cérebro & Mente, 2 (1997)
  5. Sabbatini. R.M.E.: A Descoberta da Bioeletricidade. Revista Cérebro & Mente, 6 (1998).
  6. Wilkins, R.H. - Neurosurgical Classic-XVII. Edwin Smith Surgical Papyrus. Journal of Neurosurgery, March 1964, pages 240-244
  7. Poynter, Frederick N.L.(Ed.)  The History and Philosophy of  Knowledge of The Brain and its Functions: An Anglo-American Symposium, London, July, 1957. Springfield, Charles C. Thomas Publisher, 1958.

O Autor

 

Dr. Ramon Moreira Cosenza, MD, PhD

O Dr. Ramon Cosenza é médico, com doutorado em anatomia e ex-professor da UFMG. Leciona e trabalha na área de neuropsicologia clínica em Belo Horizonte, MG, Brasil.
É autor de numerosos trabalhos científicos e também de um livro, "Fundamentos de Neuroanatomia" (Editora Guanabara Koogan, 1998), Este livro se destaca pela facilidade do leitor em compreender o funcionamento e as disfunções do sistema nervoso, devido à sua forma simples, atualizada e concisa de apresentar a informação. É voltado tanto aos alunos de graduação da área biomédica, como aos profissionais que necessitem de uma rápida atualização dos conhecimentos de sua área de trabalho.
Para maiores informações, contate o autor.
Email: cosenzar@brfree.com.br  


Publicado em 31.Dezembro.2002
Copyright 2002 Universidade Estadual de Campinas
Revista Cérebro & Mente
Núcleo de Informática BIomédica