Atualmente, o sono não é mais considerado um fenômeno passivo, muito menos um período de repouso ao sistema muscular, órgãos viscerais, sistema nervoso, e outros. Não é possível dizer exatamente qual é a função que cumpre o sono, mas sabe-se, no entanto, que todas as funções do cérebro e do organismo em geral estão influenciadas pela alternância da vigília com o sono. O sono é estudado como um fenômeno ativo, visto que não se observa uma redução generalizada da descarga dos neurônios cerebrais, mas um aumento de forma notável das freqüências de descarga dos neurônios, chegando, inclusive, a níveis maiores do que os observados em vigília tranqüila.
Embora não se tenha desvendado completamente o papel indispensável do sono na sobrevivência dos seres vivos, sabe-se cada vez mais sobre sua estrutura. Observando-se uma pessoa dormindo, tem-se a idéia de que o sono representa um estado único, monótono e sobretudo impenetrável. O sono era considerado assim, pois não havia método capaz de avaliar o que ocorria internamente com a pessoa dormindo. O principal instrumento para as descobertas sobre o sono foi um exame chamado polissonografia.
Graças à polissonografia, reconhece-se hoje que o sono não é um estado homogêneo, e que há dois estados distintos de sono. O sono mais surpreendente, e o último a ser descoberto, é o sono em que ocorrem movimentos rápidos dos olhos. Por suas iniciais em inglês, "rapid eye movements", este sono é chamado de REM. Apesar de ocupar apenas 20% do sono de um adulto, o sono REM é tão importante que o restante é chamado de sono NREM (Não REM).
A polissonografia é realizada em laboratórios do sono por meio de equipamentos especiais, e usados por técnicos capacitados. O exame normalmente dura oito horas seguidas, e ocorre, em geral, entre as 23h e as 7h. A análise do traçado, mesmo realizada com auxílio do computador, ainda exige horas de um técnico com “olho treinado” e muita paciência. Nem todos os equipamentos de polissonografia são automatizados, e poucos possuem estagiamento automático.
Dentre todos os métodos normalmente utilizados para medição dos estágios durante o sono, os principais e mais citados na literatura médica, são: EEG, EOG e EMG.
Figura 1 – Diagrama dos principais registros da polissonografia (GUIOT, 1996)
Tabela 1 – Classificação das freqüências cerebrais
|
|
||
|
|
||
|
|
||
|
|
||
|
|
O registro do EEG deve ser tomado diretamente do crânio segundo o sistema 10-20, cuja posição dos eletrodos obedece as normas internacionais recomendadas por Jasper em 1958. As posições dos eletrodos estão demonstradas na Figura 2. O nome desse sistema, 10-20, vem da medida feita de intervalos de 10 ou 20 % da distância total entre as 4 marcas do sistema, são elas : nasion, inion (protuberância occipital externa) e os pontos pré-auriculares direito e esquerdo.
Figura 2 - Diagrama esquemático dos eletrodos para a tomada do EEG (CARSKADON e RECHTSCHAFFEN, 1994).
Segundo Carskadon e Rechtschaffen, todas as ondas usadas para distinguir os estágios são bem visualizadas utilizando os canais C3 e C4, particularmente quando os sinais de amplitude são otimizados. Assim, é comum realizar o estagiamento do sono utilizando o canal C3 ou o C4. Entretanto, muitos laboratórios também tem utilizado o registro dos canais O1 e O2 como canais auxiliares.
O EOG é registrado através de eletrodos colocados nos cantos externos de ambos os olhos no plano horizontal, podendo usar inclusive uma posição oblíqua, ou seja, um pouco acima num dos olhos, e um pouco abaixo no outro olho. É importante que os eletrodos tenham a mesma referência, isto é, enquanto um dos eletrodos está referenciado pelo lobo da orelha do mesmo lado, o outro deverá ter, como referência, também o lobo da orelha do outro lado (Fig. 1). As posições desses eletrodos são conhecidas como ROC e LOC, Right Outer Canthus[2] e Left Outer Canthus[3]respectivamente.
O registro para monitorização do estado REM é realizado através de 3 eletrodos localizados na parte inferior do queixo, sobre os músculos submentonianos (Fig. 1). Usa-se a derivação bipolar de um par, mantendo-se o terceiro eletrodo como reserva para ocorrência de falha de um deles.
Após uma noite de sono, em laboratório, os resultados são descritos pelo tempo em minutos e percentuais; algumas medidas são comuns a qualquer exame de polissonografia, independente do objetivo do estudo; outras referem-se a distúrbios específicos do sono. As medidas mais utilizadas são :
Tempo Total de Registro (TTR): considerado a partir do momento em que as luzes são apagadas e o final da noite;
Tempo de Período de Sono (TPS): considerado a partir do início do sono até o término, incluindo possíveis despertares depois do início;
Tempo Total de Sono (TTS): considerado a partir do início do sono até o término, excluindo possíveis despertares depois do início;
O sono NREM tem o tempo medido na sua totalidade, bem como de cada um de seus estágios em separado, e para a avaliação do tempo de sono REM, somam-se todos os seus períodos. Dessa forma, é possível quantificar o sono efetivamente dormido, as insônias e outros distúrbios que fragmentam o sono.
Cada época é associada com o estágio que mais apropriadamente caracteriza o padrão predominante durante o intervalo examinado. Assim, o objetivo do estagiamento da época é determinar o simples fator que mais caracteriza a época. Outros tipos de medidas, como o caso da turgescência peniana durante o sono REM, conforme observado por Karacan e Shapiro, também podem ser utilizados para auxiliar na codificação do estágio da época em análise. Outros fenômenos como a respiração e a saturação do oxigênio também são apontadas por Aserink e Kleitman.
Figura 3 – EEG enquanto acordado
Sono NREM : Os quatro estágios do sono NREM são distinguíveis, principalmente, por alterações de padrão do EEG. Os dados recolhidos pelo EOG e pelo EMG contribuem muito pouco para a diferenciação do estágio, exceto em casos específicos, como a transição do estágio 1 (onde ambos sinalizam) e o EMG (especificamente do queixo e dos olhos) para a detecção do estado REM.
Estágio 1 : O padrão do EEG do indivíduo quando em estágio 1, é descrito como atividade de relativa baixa voltagem e freqüências mistas. Mista porque é comum a presença de artefatos[6], além de pequenas faixas de atividade teta.
Figura 4 – EEG em estágio 1
Estágio 2 : O padrão do EEG do estágio 2 reflete atividade de baixa voltagem e freqüências mistas. Basicamente, a diferenciação do estágio 2 para o estágio 1, se dá em dois padrões específicos que ocorrem esporadicamente. Esses padrões são conhecidos como fuso e complexo K. Os fusos são compostos por ondas de 12 a 14 cps com duração de 0,5 a 1,5 seg., enquanto que os complexos K são descritos como “ondas agudas negativas bem delineadas imediatamente seguidas por um componente positivo” (Carskadon e Rechtschaffen, 1994, p. 950).
Figura 5 – EEG em estágio 2
Estágio 3 e 4 : Os padrões de EEG dos estágios 3 e 4 são definidos pela presença de alta voltagem e ondas de atividade lenta. No estágio 3 deve haver, para sua caracterização, um mínimo de 20% e um máximo de 50% de ondas de 2 cps com amplitudes maiores que 75 mV de pico a pico por época. Pode haver ocorrência de fusos e complexos K em estágio 3.
Figura 6 – EEG em estágio 3
Para o estágio 4, as ondas de atividade lenta devem ser predominantes, estando presentes em pelo menos 50% na época analisada. Neste estágio os olhos não se movem, e o EMG se encontra tonicamente ativo, embora tenha uma atividade considerada baixa.
Figura 7 – EEG em estágio 4
Sono REM : O estagiamento do sono REM requer a coincidência de atividades específicas em todas as medidas eletrográficas : padrão específico do EEG, a ativação do EOG e a supressão da atividade do EMG. O padrão do EEG para o sono REM também é caracterizado por relativa baixa voltagem e freqüências mistas.
Embora esse estágio se chame REM, movimento rápido dos olhos em inglês, o simples movimentos dos olhos não é suficiente para indicar esse estado do sono bastante particular. Isso acontece uma vez que o fenômeno, o REM, segundo Carskadon e Rechtschaffen, não é universal, pois muitos indivíduos não apresentam o movimento rápido dos olhos.
O padrão de EEG que o estado REM apresenta, por si só, é bastante similar ao estágio 2, ou seja, atividade de baixa voltagem e freqüências mistas, com a presença de fusos e complexos K esporádicos. Assim, mesmo manualmente, e só através do EEG, muitas vezes é problemático diferenciar o padrão REM do estágio 2. Para que a época apresente o estado REM, além do EEG sinalizando o padrão específico, e da presença do movimento rápido dos olhos (quando for o caso), é interessante confirmar com a baixa atividade do EMG. A medida do sono REM em organismos intactos, tem sido a contração tônica dos músculos e dos reflexos, sinalizada, por exemplo, em contrações dos músculos da face.
Outra forma, bem menos utilizada, é uma regra descrita por Rechtschaffen e Kales, que diz que “um intervalo de baixa voltagem e freqüências mistas entre dois fusos ou complexos-K é considerado estágio 2 se não houver a presença de movimento rápido dos olhos, ou movimentos estimulados nesse intervalo e se o tempo desse intervalo for menor que 3 minutos”.
Figura 8 – EEG em estado REM
A tabela abaixo resume os critérios descritos acima.
Tabela 2 – Regras para o Estagiamento
do Sono
Estágio | EEG | EOG | EMG | ||||
Acordado
(relaxado) |
Olhos
fechados : ondas alfa
Olhos abertos : baixa voltagem e freqüências mistas |
Controle voluntário; | Atividade tônica, relativamente alta; movimento voluntário | ||||
NREM | |||||||
Estágio 1 | Relativa baixa voltagem, freqüências mistas, podendo ter atividade teta com altas amplitudes | SEM | Atividade tônica fraca, podendo diminuir do estado de acordado | ||||
Estágio 2 | Baixa voltagem, freqüências mistas, presença de Fusos e Complexos K | SEM ocasional próximo ao início do sono | Atividade tônica fraca | ||||
Estágio 3 | >= 20% e <= 50% de alta e baixa amplitude | - | Atividade tônica fraca | ||||
Estágio 4 | > 50% de alta e baixa amplitude | - | Atividade tônica fraca | ||||
REM | Baixa voltagem, freqüências mistas, atividade teta e alfas lentos | REM | Supressão tônica; contração | ||||
Movimento | Obscuro | Obscuro | Alta atividade | ||||
Sono anormal | Similar ao REM | REM | Atividade tônica; contração |
O estágio 2, sinalizado pela presença de fusos de sono, ou ainda, pelos complexos K detectados no EEG, costuma durar de 10 até 25 minutos. Para acordar um indivíduo nesse estágio, os estímulos precisam ser mais fortes que os aplicados para acordar no estágio 1. Como progresso natural do estágio 2, em 20 minutos em média, atinge o estágio 3, cujas ondas lentas são maiores que 20% e menores que 50% do sinal do EEG.
O estágio 3, de curta duração neste primeiro ciclo, serve de transição para o estágio 4. O estágio 4, caracterizado pela presença de ondas lentas, mais que 50% do sinal do EEG, costuma durar de 20 a 40 minutos, e em seguida, ocorre um retorno a estágios menos profundos. Isto é, uma passagem rápida pelo estágio 3, seguidos de 5 a 10 minutos no estágio 2, quando, após possíveis movimentos corporais, inicia-se o primeiro episódio REM, durando de 1 a 5 minutos.
Pequenas intromissões da vigília durante o sono normal ocorrem na forma de despertares breves nos quais não se recupera a consciência ou a memória. Isto se manifesta através de 30 a 60 movimentos por noite, quando muda-se de posição ou arruma-se as cobertas, sem que se lembre disso pela manhã. Os movimentos ocorrem nas trocas de estágio e nos estágios de sono mais superficial.
O sono NREM e REM continuam alternando-se durante a noite, em torno de quatro a seis ciclos. O tempo de sono REM tende a tornar-se mais longo durante o decorrer da noite, enquanto que o sono caracterizado pelos estágios 3 e 4 tendem a encurtar na mesma medida, podendo, inclusive, desaparecer nos últimos ciclos, predominando o estágio 2 nesses casos.
Outra observação bastante característica é o aparecimento de breves momentos de ativação, que segundo Tankova e Buela-Casal, ocorrem provavelmente em conseqüência da interrupção do sono. Esses despertares são freqüentes e repetitivos, prejudicando o sono em indivíduos idosos. Esses dados sugerem que, com a idade, o sono se torna mais “leve”, além de aumentar a quantidade de despertares, tornado os idosos mais sensíveis a estímulos ambientais.
Figura 9 - Exemplo de hipnograma
Através desse gráfico o médico pode, não apenas contar o tempo total de cada fase, mas também em que ordem essas fases aconteceram. Dessa forma é possível também verificar algum distúrbio cíclico que ocorra entre as fases REM e NREM.
As principais, e mais importantes características acerca do sono REM são:
Segundo a Classificação Internacional dos Distúrbios do Sono publicada pela última vez em 1990 (a primeira foi em 1978), os distúrbios se dividem em 4 grandes grupos, são eles :
Tabela 3 – Classificação
Internacional dos Distúrbios do Sono
Dissônias | Distúrbios intrínsecos do sono | ||
Distúrbios extrínsicos do sono | |||
Distúrbios do sono relacionados ao ritmo circadiano | |||
Parassônias | Distúrbios do despertar parcial | ||
Distúrbios da transição sono-vigília | |||
Parassônias geralmente associadas ao sono REM | |||
Outras parassônias | |||
Distúrbios do sono associados a alterações médico-psiquiátricas | Associadas a patologias mentais | ||
Associadas a enfermidades mentais | |||
Associadas a outras afecções médicas | |||
Distúrbios do sono propostos | Sono curto | ||
Sono longo | |||
Síndrome de hipovigília | |||
Mioclonia fragmentada | |||
Hiperidrose do sono | |||
Distúrbio do sono associado ao ciclo menstrual | |||
Distúrbio do sono associado à gestação | |||
Alucinações hipnagógicas aterrorizantes | |||
Taquipnéia neurogênica associada ao sono | |||
Laringoespasmo relacionado ao sono | |||
Síndrome de engasgos durante o sono | |||
As dissônias são alterações que produzem dificuldades para o início ou manutenção do sono ou mesmo sonolência excessiva. As parassônias são alterações nas quais não estão demonstradas afecções dos processos do sono e vigília, mas se apresentam durante o sono e, em geral, produzem manifestações ou conseqüências desagradáveis para quem possui o problema. Algumas dessas conseqüências são bem conhecidas, como o sonambulismo, o pesadelo e o terror noturno. Também se enquadram neste grupo os movimentos periódicos e a apnéia. Os distúrbios associados a alterações médico-psiquiátricas podem ser classificados em 3 grandes grupos:
2.BIANCO, Margarida. Classificação dos distúrbios do sono. In : REIMÃO, Rubens. Sono : Estudo Abrangente. 2. Ed. São Paulo : Atheneu, 1996.
3.CARSKADON, Mary A. e DEMENT, William. Normal Human Sleep : An Overview. In : KRYGER, Meir, ROTH, Thomas e DEMENT, William. Principles and Practice of Sleep Medicine. 2. Ed. USA : W. B. Saunders Company, 1994.
4.CARSKADON, Mary A. e RECHTSCHAFFEN, Allan. Monitoring and Staging Human Sleep. In : KRYGER, Meir, ROTH, Thomas e DEMENT, William. Principles and Practice of Sleep Medicine. 2. Ed. USA : W. B. Saunders Company, 1994.
5.GUIOT, Marilene. Polissonografia. In : REIMÃO, Rubens. Sono : Estudo Abrangente. 2. Ed. São Paulo : Atheneu, 1996.
6.KARACAN, I. e SHAPIRO, A. .Erection cycle during sleep in relation to dream anxiety. Archive Genital Psychiatric, n. 15, 1966.
7. MARTINEZ, Denis. O Sono. 1996. http://www.vanet.com.br/doctor/sono.htm (08 de Setembro de 1998)
8.RECHTSCHAFFEN, A. e KALES, A. .Manual of Standardized Terminology : Techniques and Scoring System for Sleep Stages of Human Subjects. Los Angeles: Brain Research Institute, 1968.
9.TANKOVA, Iren e BUELA-CASAL, Gualberto.
Sono e envelhecimento. In : REIMÃO, Rubens. Sono : Estudo Abrangente.
2. Ed. São Paulo : Atheneu, 1996.