Como Funcionam as Células Nervosas. Parte II
 O Potencial de Ação
Silvia Helena Cardoso, Luciana Christante de Mello, MSc e Renato M.E. Sabbatini, PhD
Animações e ilustrações: André Malavazzi

 
 

Eletricidade é um processo natural em nosso organismo e está envolvida na função específica de certas células especiais no cérebro e nos músculos estriados e lisos. Cada padrão de luz, som, calor, dor, cada piscar de olhos, estalar de dedos, cada pensamento, se traduz em uma sequência de pulsos elétricos. Como isso acontece?

As células nervosas possuem propriedades similares às outras células em muitos aspectos: elas se alimentam, respiram, passam por processos de difusão e osmose em suas membranas, etc., mas diferem em um aspecto importante: elas processam informação. A habilidade das células nervosas processarem informação depende de propriedades especiais da membrana do neurônio, a qual controla o fluxo de substâncias ao lado interno da célula (íons sódio, cálcio, potássio, etc).

Os neurônios não existem isoladamente: eles também se conectam uns aos outros formando as chamadas cadeias neuronais, as quais transmitem informações a outros neurônios ou músculos. Por essas cadeias caminham os impulsos nervosos. Dois tipos de fenômenos estão envolvidos no processamento do impulso nervoso: elétrico e químico. Os eventos elétricos propagam um sinal dentro de um neurônio, e o químico transmite o sinal de um neurônio a outro ou a uma célula muscular. O "engate" ou junção entre um neurônio e outro, é denominado sinapse, assunto que veremos em edições posteriores.

O Impulso Nervoso

Um impulso nervoso é a transmissão de uma alteração elétrica ao longo da membrana do neurônio a partir do ponto em que ele foi estimulado. A direção normal do impulso no organismo é do corpo celular para o axônio (veja o artigo sobre a estrutura do neurônio na edição no. 8 da Revista Cérebro & Mente).

Esse impulso nervoso, ou potencial de ação,  é uma alteração brusca e rápida da diferença de potencial transmembrana. Normalmente, como vimos no artigo anterior desta série, a membrana do neurônio é polarizada em repouso, sendo que o potencial é negativo ( -70 mV). O potencial de ação consiste de uma redução rápida da negatividade da membrana até 0mV e inversão deste potencial até valores de cerca de +30mV, seguido de um retorno também rápido até valores um pouco mais negativos que o potencial de repouso de -70mV.
 
 
 

Potencial de ação exibido em um osciloscópio.
O impulso nervoso é conhecido por potencial de ação. O potencial de ação é um fenômeno de natureza eletro-química e ocorre devido a modificações na permeabilidade da membrana do neurônio. Essas modificações de permeabilidade permitem a passagem de íons de um lado para o outro da membrana. Como os íons são partículas carregadas eletricamente, ocorrem também modificações no campo elétrico gerado por essas cargas.

Uma maneira de visualizar o potencial de ação é amplificar várias milhares de vezes as mudanças elétricas captadas através de um eletrodo colocado no neurônio, e representar a amplitude em volts, em função do tempo, em um equipamento denominado osciloscópio. Na tela ao lado, o traçado verde mostra a evolução do potencial de ação em um ponto do neurônio (da esquerda para a direita). A linha reta inicial corresponde à voltagem do potencial de repouso da membrana. A primeira alteração é o artefato promovido pela chegada de uma estimulação elétrica. Depois de um certo tempo de retardo, o potencial começa a subir (fase de despolarização) e depois a descer (fase de repolarização), Após um breve excesso de repolarização, o potencial de membrana volta ao valor anterior à estimulação. No total, todos esses fenômenos duram pouco mais de 1 milissegundo.


 
 


Para você imaginar como acontece o impulso nervoso, observe a figura ao lado. A percepção da dor aguda quando um objeto pontiagudo entra em seu pé é causada pela geração de certos potenciais de ação em certas fibras nervosas na pele. Acredita-se que a membrana destas fibras possui canais de sódio que se abrem quando o terminal nervoso da célula é esticado. A cadeia inicial de eventos é assim:

1. Objeto pontiagudo entra na pele;
2. A membrana das fibras nervosas na pele é esticada;
3. Os canais permeáveis ao sódio (Na+) se abrem.
 
 
 
 

Em virtude do gradiente de concentração e carga negativa do fluido extracelular, os íons entram na fibra através destes canais. A entrada de sódio (em amarelo) despolariza a membrana, isto é,  a face da membrana imersa no fluído extracelular das fibras se torna menos negativo em relação ao interior. Se esta despolarização, chamada potencial gerador, alcança o nível crítico, a membrana irá gerar um potencial de ação. O nível crítico de despolarização que deve ser atravessado a fim de desencadear um potencial de ação é chamado limiar. Os potenciais de ação são causados pela despolarização da membrana além do limiar.

 

Fig.1. Reflexo simples - Contato da taxinha (estímulo externo) no pé do homem. 
(Clique no botão "Reinicia" para ver a animação). 

A perfuração na pele é transduzida em sinais que viajam para cima em nervos sensoriais (direção do fluxo de informações indicado pelas flexas). Esta informação chega até a medula espinhal, e é distribuída para interneurônios (neurônios que fazem conexões intermediárias com outras cadeias neuronais). Alguns destes neurônios enviam axônios à região sensorial do cérebro onde a sensação dolorosa é registrada. Outros fazem sinapse em neurônios motores, os quais enviam sinais descendentes aos músculos. Os comandos motores conduzem a contração muscular e retirada do pé. 

Este é um exemplo de uma cadeia neuronal denominada arco reflexo.

Como Funciona o Potencial de Ação

O Potencial Local ou Gerador

Como vimos no artigo anterior desta série, a membrana dos neurônios não estimulados (em repouso) apresenta uma diferença de potencial elétrico entre o interior e o exterior de cerca de 70 mV, e que é mantida enquanto a célula está viva. Trata-se, então do potencial de membrana de repouso.

Como é possível que o potencial de repouso possa ser perturbado até o ponto de surgir um potencial de ação?

Quando um estímulo é aplicado a essa membrana, ocorre um desiquilíbrio temporário entre as cargas elétricas da membrana e as concentrações de vários íons de um lado e de outro da mesma, que é chamado de potencial local. Sempre que a membrana, partindo do potencial de repouso, é despolarizada a cerca de -50 mV, formam-se potenciais de ação. O potencial em que se inicia o potencial de ação é denominado limiar (veja figura acima). Nesse potencial limiar, a membrana é instável. Ela diminui espontaneamente sua polaridade, com grande rapidez, chegando geralmente a inverter a sua polaridade: segue-se a brusca elevação ("traço ascendente") do potencial de ação, que ultrapasso o potencial 0 e atinge o "excedente". Esse estado de diminuição da carga, desencadeado no "limiar", espontâneo e progressivo, também é chamado de excitação. A excitação é de curta duração, normalmente menos de 1 ms (milisegundo), sendo comparável a uma explosão que rapidamente se dissipa.

Um estímulo que tende a diminuir a polaridade natural da membrana é chamado de despolarizante. Um estímulo que tende a aumentar a polaridade natural é chamado de hiperpolarizante. Os potenciais locais não se propagam, ou seja, ficam restritos unicamente na membrana vizinha ao local de aplicação do estímulo.

Propriedades do Potencial Gerador

O potencial local é muito importante para o funcionamento de um neurônio. Como vimos no capítulo sobre morfologia dos neurônios, uma célula nervosa tem muitos prolongamentos curtos do corpo celular, que são chamados dendritos. Um neurônio pode receber simultaneamente muitos estímulos despolarizantes e hiperpolarizantes vindos de outros neurônios ou de fontes externas de estimulação, em vários pontos dos dendritos e do corpo celular. Cada estímulo geralmente provoca uma pequena alteração do potencial local. Quando dois potenciais locais estão perto (fisicamente) um do outro, eles podem se "encavalar", ou seja, ocorre uma soma de suas amplitudes. Ou, eles podem se anular, pois são em direções opostas. A isso chamamos de "soma espacial". Pode ocorrer também que dois estímulos sucessivos, separados de pouco tempo entre si, ocorrem no mesmo ponto da membrana. Então, antes que o potencial local causado pelo primeiro estímulo volte ao normal, o segundo vai se somar (ou subtrair) a ele. A isso denominamos "somação temporal".

O que o neurônio faz então é uma "conta de somar" de todos os potenciais locais. Se o resultado for no sentido da despolarização grande, vai ocorrer um fenômeno muito marcante, que é o potencial de ação, a partir de uma certa amplitude. Vamos ver agora porque e como ele ocorre.

Os Passos Iniciais

Quando um estímulo atinge a membrana do neurônio ocorre uma pequena despolarização local. Esse estímulo pode ser fótico, químico, físico ou farmacológico, dependendo da sensibilidade da célula. A despolarização faz com que canais de Na+ e K+ dependentes de voltagem se abram e permitam um fluxo de correntes iônicas de um lado para o outro da célula. Simultaneamente ocorre um fluxo de fora para dentro de Na+ (pois, como vimos no capítulo anterior, existe uma  maior concentração de sódio fora), o que tende a despolarizar ainda mais a membrana; e um fluxo de dentro para fora de K+, que tende a repolarizá-la.

"Tudo ou Nada"

Existe, contudo, uma diferença importante entre os canais de Na+ e K+: os canais de Na+ se abrem mais rapidamente do que os canais de K+. Com isso, a despolarização provoca um efeito auto-alimentador: quanto mais sódio passa pelo canal, mais ele fica permeável. É uma avalancha de despolarização, que leva a um ponto em que a corrente despolarizante de Na+ é muito maior que a corrente repolarizante de K+; a esse ponto dá-se o nome de POTENCIAL LIMIAR.   A partir do momento em que ele é atingido, o processo não pode mais ser revertido e ocorre uma abrupta inversão da polarização da membrana, ou seja, o potencial de ação. Na maioria dos neurônios, o valor do potencial limiar é de cerca de -30mV.

Uma vez atingido o limiar, o potencial de ação ocorre com uma amplitude e duração fixas. Se o limiar não for atingido, ou seja, a despolarização ou o influxo de sódio não forem suficientemente fortes, não ocorre o potencial de ação. Por isso os cientistas o denominam de um "fenômeno tudo ou nada", muito parecido com um mecanismo digital (0 ou 1)

Voltando ao Normal

A fase de despolarização do potencial de ação é abrupta e muito rápida: ocorre em menos de um milissegundo. Logo depois dele ter atingido o pico máximo de despolarização (que inverte o potencial de membrana em cerca de 10 a 20 mV positivos), ele começa a voltar ao normal, ou seja, em direção ao valor de repouso. A esse fenômeno denominamos repolarização, e nele acontece uma coisa muito importante: enquanto durar essa recuperação o neurônio fica insensível a novos estímulos (é o período refratário).

Porque acontece isso? Para entendermos, temos que conhecer outra diferença importante entre os canais de Na+ e K+: o primeiro sofre inativação e o segundo não.

Após ter ocorrido o potencial de ação,  os canais de Na+ passam para um estado inativo no qual não são capazes de responder a um novo estímulo, ou seja, ficam fechados a novos influxos de sódio. Enquanto isso, os canais de K+, que ainda estão se abrindo, devido à sua lentidão caracteristica, permanecem ativos e  permitem uma grande saída de íons K+. Isso leva à repolarização da membrana, de qua falamos acima. Ela chega a ser "exagerada" na sua fase final, provocando inclusive uma pequena e transitória hiperpolarização.

Os canais de Na+ somente voltam a poder ser estimulados apenas depois que a membrana estiver totalmente repolarizada. Enquando não houver um número suficiente de canais de Na+ nessa condição, é possível estimular o neurônio, mas ele responderá somente se a intensidade for bem maior. É o que denominamos de período refratário relativo. Quando os canais estão totalmente fechados e é impossível estimular o neurônio, por maior que seja a intensidade do estímulo, dizemos que o período refratário é absoluto.



Veja também: Como Funcionam as Células Nervosas. Parte I
 

Próximo:  A Propagação do Potencial de Ação pela Fibra Nervosa (fibras mielínicas e amielínicas, condução contínua e saltatoria) Potencial de ação composto (fibras). Velocidade do potencial de ação e como pode ser medido. Relevância para a clínica.
 
 
 

Os Autores


Silvia Helena Cardoso, PhD. Psicobióloga, mestre e doutora em Ciências. Fundadora e editora-chefe da revista Cérebro & Mente. Universidade Estadual de Campinas. 

Luciana Christante de Mello, MSc, MSc. Farmacêutica, 

Renato M.E. Sabbatini, PhD. Diretor do Núcleo de Informática Biomédica, Universidade Estadual de Campinas. 

André Malavazzi Designer 

Copyright 2000 Universidade Estadual de Campinas
Uma iniciativa do Núcleo de Informática Biomédica