Julio Rocha do Amaral, MD e Renato M. E. Sabbatini, PhD
Quando um medicamento é receitado ou administrado a um paciente, ele pode ter vários efeitos. Alguns deles dependem diretamente do medicamento, ou seja, de sua ação farmacológica. Existe, porém, um outro efeito, que não está vinculado à farmacologia do medicamento, e que também pode aparecer quando se administra uma substância farmacologicamente inativa. É o que denominamos "efeito placebo". É um dos fenômenos mais comuns observados na medicina, mas também um dos mais misteriosos.
O efeito placebo é poderoso. Em um estudo realizado na Universidade de Harvard, testou-se sua eficácia em uma ampla gama de distúrbios, incluindo dor, hipertensão arterial e asma. O resultado foi impressionante: cerca de 30 a 40% dos pacientes obtiveram alívio pelo uso de placebo!
Além disso, ele não se limita a medicamentos, mas pode aparecer em qualquer procedimento médico. Em uma pesquisa sobre o valor da cirurgia de ligação de uma artéria no tórax na angina de peito (dor provocada por isquemia cardíaca crônica), o placebo consistia apenas em anestesiar o paciente e cortar a pele. Pois bem: os pacientes operados ficticiamente tiveram 80% de melhora. Os que foram operados de verdade tiveram apenas 40%. Em outras palavras: o placebo funcionou melhor que a cirurgia.
O que é o efeito placebo? Como ele pode ser explicado?
Neste artigo vamos examinar as bases
neurobiológicas do efeito placebo, de acordo com as hipóteses
mais recentes. Estudando e compreendendo melhor o efeito placebo e seu
lugar na medicina tem grande importância para o próprio ato
terapêutico, além de ter grandes repercussões éticas
na prática e na pesquisa médica. Vamos concentrar nossas
explicações sobre um tipo específico de placebo, que
é o agente farmacológico (medicamento). Mas os princípios
discutidos podem ser generalizados para qualquer tipo de placebo.
"Placebo é qualquer tratamento que não tem ação específica nos sintomas ou doenças do paciente, mas que, de qualquer forma, pode causar um efeito no paciente."Note bem a diferença: placebo é o tratamento inócuo. Efeito placebo é quando se obtém um resultado a partir da administração de um placebo.
O conhecimento sobre o efeito placebo ampliou-se muito com a necessidade da medicina realizar ensaios clínicos controlados, que são uma metodologia científica muito utilizada para determinar a eficácia terapêutica de novos fármacos.
Nestes ensaios administra-se obrigatoriamente um placebo a um grupo controle de pacientes, e depois se compara os resultados com os obtidos no grupo que recebe a medicação ativa, cuja ação se pretende demonstrar. Quanto maior a diferença nos resultados entre o segundo e o primeiro grupos, maior a eficácia farmacológica da substância em estudo.
Os médicos logo notaram nestes
estudos que os placebos tinham muito mais efeitos sobre a doença
estudada do que podia se esperar. Em alguns casos, os efeitos colaterais
(indesejados) dos placebos chegavam a ultrapassar os do medicamento ativo...
Em conseqüência, houve um
aumento grande nas pesquisas científicas com a finalidade de esclarecer
melhor o que é esse efeito, porque ocorre, qual a sua base fisiológica,
etc.
Como o efeito placebo pode ser real, ou seja, provocar mudanças benéficas no paciente, ele pode ser útil na prática clínica. Isso é inclusive permitido pelo código de ética médica.
Placebos inertes - são aqueles realmente desprovidos de qualquer ação farmacológica, cirúrgica, etc.
Placebos ativos - são os que têm ação própria, embora, às vezes, não específica para a doença para a qual estão sendo administrados.
Diz-se que os placebos têm efeito positivo quando o paciente relata alguma melhora e efeito negativoquando eles relatam que houve piora ou surgimento de algum efeito colateral desagradável (neste caso o placebo é chamado de nocebo, palavra que deriva do latim nocere, ou provocar dano).
Uma conclusão interessante é a seguinte: toda medicação administrada, além do seu efeito real farmacológico, tem também um efeito placebo, e eles dificilmente podem ser separados um do outro.
A ciência médica ainda não explicou completamente qual a causa (ou causas) do efeito placebo. Mas, ao que parece, ele resultaria da espera do efeito por parte do paciente.
Como se explica isso? Existem diversas teorias, decorrentes de diversas escolas da psicologia. A que adotaremos aqui, e que parece ser uma das mais prováveis, é a do reflexo condicionado. Você deve se lembrar dele: foi descoberto por um fisiologista russo chamado Ivan Pavlov no final do século passado, que ganhou o primeiro prêmio Nobel de Medicina, em 1902. Ele é conhecido popularmente pelo famoso experimento do cão que salivava ao ouvir um sino (veja aqui uma recapitulação de como eram feitos esses experimentos e o que se aprendeu com eles).
A idéia geral é que o
efeito placebo surge como um reflexo condicionado involuntário por
parte do organismo do paciente. A seguir veremos como isso acontece.
Existem dois tipos de reflexos: condicionados e incondicionados.
Os reflexos incondicionados são aqueles com os quais os animais nascem, adquiridos ao longo da evolução de sua espécie, ou filogênese. Por exemplo, se colocarmos comida na boca de um cão, ele começa a salivar. Isso está determinado dentro do seu próprio sistema nervoso.
Os reflexos condicionados são aqueles que os animais adquirem durante suas vidas, ou ontogênese. Eles são um dos tipos de aprendizado de que o sistema nervoso é capaz. À medida que determinados estímulos ambientais vão agindo sobre eles, formam respostas condicionadas a esses estímulos. Logicamente, para que essas respostas condicionadas surjam, elas têm que se basear em respostas incondicionadas. No experimento clássico de Pavlov, tocar o sino não causava nenhuma salivação no cão, mas depois dele apresentar o sino repetidamente em conjunto com o estímulo incondicionado (a comida), o cão começou a salivar em resposta ao sino, apenas.
Pavlov definiu o reflexo condicionado
como:
"uma conexão nervosa temporária entre um dos inumeráveis fatores do ambiente e uma atividade bem determinada do organismo."Ou seja, o reflexo é uma conexão temporária entre um estímulo qualquer do meio ambiente e um reflexo incondicionado do organismo, que passará, assim, a ser condicionado, despertado por aquele estímulo ambiental, até então previamente indiferente.
Ilustração: Renato M. E. Sabbatini
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Após fazer soar um estímulo sonoro, aplica-se, em um cão, uma injeção de acetilcolina. Em resposta à acetilcolina o cão tem hipotensão (queda da pressão arterial). Se, depois de diversas combinações do som com a injeção, substituirmos a acetilcolina por adrenalina, o cão continuará a ter hipotensão. Deveria ter hipertensão (aumento da pressão arterial), portanto o condicionamento mudou completamente a resposta ao segundo agente. A ação farmacológica da adrenalina foi anulada. Seria de se esperar que o cão, ao recebê-la, tivesse aumento da pressão arterial; mas como está recebendo aquela injeção temporalmente associada ao estímulo sonoro, que para ele é sinal de hipotensão, sua pressão continua a baixar. O organismo do cão ignora o efeito farmacológico da adrenalina e obedece ao sinal de hipotensão, registrado no sistema nervoso central.
Fato muito importante é que diversos
estímulos ambientais podem conjugar-se entre si, formando uma verdadeira
cadeia, e qualquer desses estímulos pode agir como sinal e por em
marcha o reflexo condicionado. Outros estímulos do ambiente podem
apresentar o mesmo efeito, como, por exemplo, a entrada na sala onde a
experiência se realiza, a visão do experimentador, a audição
de sua voz (mesmo fora da sala), etc
No homem existe ainda algo importante a ser considerado. Segundo Pavlov, nos animais existe apenas o que ele chamava de primeiro sistema de sinais da realidade. Trata-se dos sistemas do cérebro que recebem e analisam os estímulos que vêm de fora e de dentro do organismo (por exemplo, sons, luzes, nível de CO2 no sangue, movimentos intestinais, etc.).
No ser humano, além desse primeiro sistema de sinais, existe um segundo sistema, o da linguagem, que aumenta as possibilidades de condicionamento. Para o ser humano, a palavra pode ser um estímulo tão real, tão eficaz, tão capaz de nos mobilizar como qualquer estímulo concreto, e, às vezes, até mais. Além disso, o fato da palavra ser simbólica, ser uma abstração, permite que o estímulo condicionado seja generalizável.
Um exemplo?
Se condicionarmos um homem dando-lhe choques na mão após ouvir a palavra campainha, haverá reação de defesa com retirada da mão. Depois de algum tempo, ao ouvir a palavra campainha, em seu idioma natal ou em algum outro que ele entenda, assim como ao ver uma campainha, real ou em foto o homem terá a mesma reação de retirada da mão. Por quê? Porque o homem não foi condicionado a um conjunto de sons, como foi o caso do cão, e sim a uma abstração, a idéia da campainha.
Outro exemplo de experiência de
condicionamento em seres humanos: dá-se choque na mão de
um sujeito após ele ouvir a palavra caminho, provocando retirada
da sua mão. Depois de algum tempo, ouvindo a palavra caminho, esta
pessoa retira a mão, fazendo o mesmo, também, ao ouvir sinônimos:
estrada, via, rota, etc.
Segundo essa explicação, o que conta é a realidade presente no cérebro, não a realidade farmacológica. A expectativa do sistema nervoso em relação aos efeitos de uma droga pode anular, reverter ou ampliar as reações farmacológicas desta droga. Pode também fazer com que substâncias inertes provoquem efeitos que delas não dependem.
Poderíamos então definir efeito placebo como o resultado terapeuticamente positivo (ou negativo) de expectativas implantadas no sistema nervoso dos pacientes por condicionamento decorrente do uso anterior de medicação, contatos com médicos e informações obtidas por leituras e comentários de outras pessoas.
Júlio
Rocha do Amaral, MD - Professor de farmacologia
clínica, anatomia e fisiologia . Gerente Médico Científico
da Merck S/A Indústrias Químicas. Redator de manuais didáticos
sobre anatomia, fisiologia e farmacologia para uso da Merck. Supervisor
de editoração das publicações científicas:
Senecta, Galenus e Sinapse. Redator de protocolos e relatórios de
pesquisas clínicas de produtos, a partir de 1978. Coordenador adjunto
dos cursos de formação de especialistas em Oxidologia, promovidos
pelo Instituto da Pessoa Humana (IPH) e Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO).
Chefe do Serviço de Psiquiatria do Departamento de Neurociências
do Instituto da Pessoa Humana (IPH). Co-autor do livro 'Princípios
de Neurociências, entre outros.
Email: julioamaral@olimpo.com.br |
Renato M.E. Sabbatini, PhD. Doutorado em Neurofisiologia do Comportamento pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Pesquisador convidado do Instituto Max Planck de Psiquiatria, Munique, Alemanha. Professor Associado do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Diretor associado do Núcleo de Informática Biomédica, Universidade Estadual de Campinas. Editor associado da revista Cérebro & Mente. Email: sabbatin@nib.unicamp.br |