Epilepsia na Infância

Dr. Jesus Gomez-Placencia, MD, PhD

A epilepsia é definida pela Organização Mundial de Saúde como uma "afecção crônica de etiologia diversa, caracterizada por crises repetidas, devidas a uma carga excessiva dos neurônios cerebrais, associada eventualmente com diversas manifestações clínicas e paraclínicas" (1). Em outras palavras, certas mudanças patológicas nas células cerebrais causam uma atividade anormal, que se manifesta de outras maneiras, como contrações repetidas e espamódicas dos músculos de partes distintas do corpo (as convulsões), anomalias sensoriais e psicológicas), etc.

Em todos os países, a epilepsia representa um problema importante de saúde pública, não somente por sua elevada incidência, calculada em 18 de cada 1000 habitantes, mas também pela repercussão da enfermidade, a recorrência de suas crises, as repetidas incapacidades desta mesma causa, além do sofrimento dos próprios pacientes devido às restrições sociais que na grande maioria das vezes são injustificadas (2).

A incidência na população pediátrica é grande, uma vez que deve se recordar que 75% dos pacientes epilépticos iniciam seu padecimento antes dos 18 anos (3). Reside aqui a importância de efetuar um diagnóstico o mais cedo possível e estabelecer um tratamento idôneo com a aplicação dos princípios fundamentais da terapia anti-epiléptica na criança, além de manejar os aspectos psico-sociais relevantes para oferecer uma completa reintegração a seu núcleo familiar, escolar e social.

Em um dos campos da Medicina onde são mais importantes as diferenças de todo tipo entre adulto e criança, é precisamente a Neurologia e em especial a epilepsia. O sistema nervoso central (SNC) da criança desde antes do nascimento se encontra em mudança dinâmica constante. Apesar de sua formação começar nas primeiras semanas após a concepção, sua maturação continua até a idade adulta. A criança como conseqüência destas mudanças ativas, pode desenvolver crises epilétpicas de maneiras que não se apresentam no adulto (2-4).

Por um lado, certas síndromes epilépticas aparecem somente em uma faixa específica de idades, por outro, as manifestações clínicas das crises se modificam com a idade. Por exemplo, existe uma incapacidade do cérebro do recém nascido para desenvolver crises severas, chamadas de tônico-clônicas. As crises febris (convulsões que se apresentam depois de uma febre alta) se apresentam somente entre os seis meses e os cinco anos de idade, etc. Desde cedo, a sensibilidade aos diferentes medicamentos também se modifica, não somente em função da mudança do tipo de crise, mas também pela mudança no metabolismo dos fármacos que são diretamente dependentes da idade (5-7).

Tratamento Racional da Epilepsia

É possível ao médico neurologista oferecer um tratamento mais racional e com melhor controle, se considerarmos vários fatores:

A identificação adequada das diferentes síndromes epilépticas;
A especificidade terapêutica destas síndromes (por exemplo, as crises febris se controlam com fenobarbital ou valproato);
conhecimento das modificações do metabolismo dos medicamentos em relação à idade;
A possibilidade de se fazer a determinação dos níveis de medicamentos anti-epilépticos no sangue;
A aplicação de outros critérios, revistos adiante.

Entre as conseqüências do tratamento racional estão uma diminuição importante dos possíveis efeitos secundários, uma melhor relação custo-benefício (tanto a nível particular como institucional) e uma integração familiar, social, educacional e cultural da criança epiléptica mais adequada.

Para iniciar um manejo racional do paciente, uma vez confirmado o diagnóstico de epilepsia, deve-se estar ciente que este padecimento pode ser a manifestação inicial de uma patologia que diminui o limite de descarga do cérebro, sempre se devendo descartar a possibilidade de uma lesão potencialmente tratável por outros meios ou que ponha em risco a vida.

O Diagnóstico

O médico deve proceder primeiramente em tomar uma detalhada história do paciente, realizar uma minuciosa exploração física e neurológica, utilizar o EEG (eletroencefalograma) e estudos de neuroimagem, etc. Em alguns casos, é necessário determinar se há alguma patologia neurológica progressiva ou suscetível de terapia específica (por exemplo, tumor intracraneal, enfermidade degenerativa, cisticercose).

Em seguida, o que se deve fazer é categorizar o modelo de crise sofrida, de acordo com a Classificação Internacional de Crises Epilépticas (8), a qual distingue basicamente dois tipos de crises:

As crises parciais ou focais (por que tomam somente uma parte restrita do cérebro, iniciando geralmente como um "foco" de atividade anormal em um ponto específico, e não se alastrando por outras regiões do cérebro); as crises generalizadas, assim chamadas por que se alastram por quase todo o cérebro.

A classificação descreve os diferentes modelos, com suas manifestações eletroencefalográficas relevantes, ictais e inter-ictais (ou seja, durante ou depois da crise). Por outro lado, a identificação clínica e eletroencefalográfica das diferentes síndromes epilépticas, dada sua importância de reconhecimento, não somente do ponto de vista clínico-terapêutico, mas também do ponto de vista de prognóstico, fisiopatológico, etc. fez necessária sua classificação (9).

O Tratamento

Uma vez estabelecido o diagnóstico e identificado o modelo da crise, e em seu caso, a crise epiléptica, se deve iniciar o tratamento, para o qual se deve responder quatro perguntas básicas que se relacionam com sua continuação:

QUANDO ? QUAIS ? QUANTO ? e COMO?

Quando Tratar ?

Esta primeira pergunta se refere a quando se deve tomar a decisão de indicar um tratamento anti-epiléptico, o qual,uma vez estabelecido, se deve manter por um período prolongado de tempo. Esta pergunta é especialmente crítica quando se refere à criança que teve sua primeira convulsão, já que se deve recordar que cerca de 5% das crianças saudáveis apresentarão uma crise antes dos 10 anos de idade, além de existirem crises recorrentes não epilépticas (10) com as quais se deve fazer diagnóstico diferencial.

A decisão terapêutica é importante, já que depois da primeira crise existe um risco de 25 a 75% de recorrência que aumenta para 65 a 95% depois de duas ou mais crises (11, 12). Se bem que estas cifras representam uma probabilidade estatística, existem diferentes fatores de risco que permitem ao neurologista determinar com maior precisão a probabilidade de recorrência (11).

Precisamente, a criança que tem a primeira crise é de particular utilidade a avaliação do neurologista pediatra, que tem formação específica para isto, o qual deve solicitar os estudos paraclínicos de forma racional e dirigida (13), os interpretar de maneira adequada e estabelecer o manejo correto, e regressar o paciente ao médico que continuará o controle, retornando ao neurologista pediatra para reavaliação periódica.

Uma vez determinada a necessidade de estabelecer um tratamento farmacológico, passa-se a segunda pergunta.

FATORES DE RISCO DE RECORRÊNCIA DEPOIS DA PRIMEIRA CRISE

História de lesão do SNC
EEG com descargas epileptógenas
Exame neurológico com dados de lateralização
História familiar positiva em parentes de primeiro grau

Quais Tratamentos Utilizar ?

Uma vez que este é um guia prático para pacientes e médicos não-especialistas, mencionaremos somente os medicamentos anti-epilépticos de primeira linha para os três principais tipos de crises epilépticas, sugerindo para o momento o estudo de outros medicamentos e o tratamento das síndromes epilépticas específicas, a consulta aos textos de epileptologia ou ao neurologista pediatra (14).

Para as crises tônico-clônicas generalizadas (convulsões que tomam todos os membros, com extensão rígida seguida de movimentos de agitação), os seguintes medicamentos são considerados ter a mesma efetividade clínica (2):

Difenilhidantoína
Carbamazepina
Fenobarbital
Ácido Valproico

No entanto, para as crises parciais, de qualquer tipo que sejam, simples, complexas ou com generalização secundária, a difenilhidantoina, a carbamazepina e o fenobarbital têm demonstrado uma utilidade semelhante (2). Para fins práticos e clínicos a primidona é considerada semelhante ao fenobarbital em relação ao seu espectro de ação e aos efeitos secundários que pode apresentar.

Por outro lado, para as crises de ausências típicas os fármacos que se podem considerar de primeira linha são:

Etosuccimida
Acido Valproico
Clonacepam

A escolha de qualquer um em particular depende das circunstâncias do paciente determinado, em especial a disponibilidade dos medicamentos em farmácias da região, a idade do paciente, o custo do medicamento (este deve ser considerado em um meio institucional) e os efeitos secundários, os quais podem ser sistêmicos (gastrointestinais, hepáticos, hematológicos) ou centrais. Com os dois primeiros deve se ter especial cuidado na utilização do valproato, por sua hepatotoxicidade potencial, a qual pode ser fatal, em especial se associado a outros medicamentos antes dos dois anos de idade. Com o terceiro se considera principalmente seus efeitos sobre funções cognitivas e de conduta. As alterações de conduta são mais freqüentes com o fenobarbital e o clonacepam, no entanto as funções cognitivas se afetam mais com a difenilhidantoína e muito menos com o valproato. Em especial, a carbamazepina tem efeitos mínimos a este respeito (15). O incremento gradual da dose até chegar aos níveis terapêuticos diminui de maneira importante os efeitos secundários centrais e é sempre importante informar aos pais a respeito deles, para que por iniciativa própria suspendam a medicação, no caso deles aparecerem.

Como Tratar A Epilepsia ?

Una vez selecionado o medicamento considerado conveniente para o paciente, de acordo com o tipo de sua crise, idade, etc., se deve determinar como, isto é, qual é a maneira como se vai administrar, para o qual é necessário considerar sobretudo no paciente pediátrico dois aspectos muito importantes:

1) a dose,
2) o horário.

Tanto um como o outro variam de acordo com a idade (5-7); como exemplo pode se considerar a difenilhidantoina. Este medicamento deve ser administrado por via oral a doses recomendadas pelo neurologista, que variam com a idade. Em lactantes pode ser necessário administrar o medicamento de maneira fracionada a cada 4 ou 6 horas, e prolongar o intervalo entre as doses para idades maiores. Em adolescentes e adultos é possível administrar o medicamento em uma única dose diária (7).

A administração otimizada com base nestes fatores permite manter os níveis de medicamento no corpo de maneira estável com um mínimo de flutuação (16).

A grande maioria dos pacientes se controlam com somente um medicamento, a experiência de todos autores coincide em assinalar a monofarmácia ou monoterapia como a maneira mais racional e útil de controlar o paciente epiléptico.

Em nossa experiência, as três causas mais freqüentes de controle inadequado são:

1) falta de cumprimento na administração dos medicamentos,
2) horário de administração que não leva em conta a vida média do medicamento;
3) prescrição de medicamento não indicado para o tipo de crise (por exemplo, difenilhidantoina para crises febris, medicamentos que propiciam a aparição de outras crises ou uma identificação incorreta de algumas outras síndromes epilépticas com especificidade terapêutica).

Se se exclui a última possibilidade, se deve levar em conta a grande variação individual nas crianças da farmacocinética, razão pela qual se deve determinar os níveis séricos do fármaco, o qual permite corroborar ou descartar estes desvios, e otimizar a administração do medicamento.

A utilização racional da determinação dos níveis circulantes dos anticonvulsivantes permitiu otimizar o controle médico da epilepsia, em especial a população pediátrica pelas razões já assinaladas, mas deve-se recordar que a informação obtida através desta técnica é mais útil para a difenilhidantoína, a carbamazepina e o fenobarbital, em menor proporção para o ácido valproico, e de pouca utilidade na administração de benzodiacepinas (16b). Nos primeiros existe uma boa correlação entre os níveis terapêuticos e o controle das crises, no caso da difenilhidantoina é maior sua utilidade, uma vez que pequenas modificações da dose podem resultar em flutuações amplas dos níveis circulantes (5). No caso de valproato, este medicamento tem flutuações apreciáveis de seus níveis durante o dia, sem que este feito tenha repercussão clínica(16c). Não se deve esquecer que o conceito de faixa terapêutica é relativo, representando um compromisso estatístico e ainda que tenha uma grande variação, em especial nas crianças, deve-se utilizar de maneira racional, com o conhecimento do comportamento do medicamento a determinar.

Se se comprova que se utilizou o fármaco de maneira correta e ainda não há controle adequado da crise, deve-se substituir o medicamento inicial por outro de primeira linha que tenha sido considerado uma segunda opção. Não se recomenda adicionar outro remédio ao primeiro, pois existem importantes interações medicamentosas que podem modificar um ou outro sentido as concentrações séricas levando-as a níveis subterapêuticos (insuficientes para o controle da crise) ou tóxicos (excesso de medicamento), em outros casos sua combinação pode ter outros efeitos severos (sedação mais ou menos pronunciada, que repercute de maneira negativa nas funções cognitivas, status de ausência induzido pela combinação de valproato e clonacepan).

Em geral, a experiência no manejo de pacientes epilépticos de qualquer idade concorda que na maioria dos casos "...multiplicar o número de fármacos anti-epilépticos administrados simultaneamente é mais provável que multiplique o número de efeitos secundários do que incremente a proteção das crises" (17). Além disso, faz mais difícil o controle da crise, em nossa Clínica de Epilepsia vários dos pacientes enviados com diagnóstico de "crise de controle difícil " que chegam recebendo polifármacos, em ocasiões até com quatro ou cinco medicamentos combinados, foram controladas de maneira satisfatória ao eliminar todos exceto a primeira escolha, administrados seguindo os princípios farmacocinéticos descritos.

Se o paciente não responde a este segundo medicamento, é conveniente que receba uma avaliação do neurologista pediatra que pode recorrer a estudos diagnósticos anteriores, já em forma dirigida, e faça um manejo médico mais especializado, em especial por que muitos destes pacientes que não se controlam inicialmente apesar de receber o manejo indicado de doses e horários indicados podem apresentar uma patologia neurológica de fundo cuja manifestação inicial seja o quadro epiléptico, ou que possam apresentar algum dos síndromes epilépticos que tenham especificidade terapêutica e que por informação inadequada não tenham sido identificados clinica e eletroencefalograficamente.

Atualmente se encontram disponíveis novos fármacos anti-epilépticos desenvolvidos como resultado de um melhor conhecimento de alguns dos mecanismos fisiopatológicos operantes na epilepsia. Em nossa experiência com a lamotrigina, a vigabatrina e a gabapentina, temos encontrado que sua indicação precisa e de maior utilidade, sobretudo em relação custo-benefício, é prescrevê-los como medicamento de adição, isto é, utilizar um anti-epiléptico de primeira linha, como carbamazepina, oxcarbamazepina ou difenilhidantoína, combinado com um destes novos fármacos (politerapia racional).

Por outro lado, como outros autores, temos encontrado que a vigabatrina pode ser considerada como medicamento de escolha para espasmos infantis, de qualquer etiologia, sozinha ou combinada com ácido valproico, uma vez que a lamotrigina demonstrou especial utilidade na síndrome de Lennox-Gastaut.

Quanto Tempo Tratar?

Esta pergunta se refere à duração do tratamento, o fato de mencionar aos pais e aos pacientes o conceito totalmente incorreto a respeito da suposta incurabilidade da epilepsia é obsoleto e danoso, já que tem repercussões importantes no paciente e em sua família. Existe toda evidência necessária na literatura, com base em estudos prospectivos com um seguimento bastante prolongado, para afirmar com segurança que de 75 a 88% dos pacientes que tenham estado livre de crises durante um período de 3 a 4 anos não tenha recorrência ao suspender o tratamento (18-20b), na se assinalam os principais fatores que se associam com um prognóstico favorável (20b,21). Desde o início, estes dados têm um valor estatístico para uma população geral, sendo evidente que em um paciente determinado, o prognóstico final dependerá sobretudo da patologia primária causadora da crise e que em muitos casos, do tipo específico da síndrome epiléptica. Por isto se considera de extrema utilidade quando se considera a possibilidade de se suspender o tratamento a um paciente controlado por este período de tempo, um avaliação integral incluindo a revisão dos traços eletroencefalográficos de controle pelo neurologista pediatra, que deve efetuar com maior fundamento a decisão da suspensão do medicamento.

FATORES ASSOCIADOS AO PROGNÓSTICO FAVORÁVEL

Desenvolvimento psicomotor normal
Inteligência normal
Ausência de signosneurológicos
Início depois dos 2 anos de idade
Pouca freqüência de crises
Somente um tipo de crise
Boa resposta ao tratamento
Rápida melhoria do EEG com o tratamento

Autor:

Jesus Gomez-Placencia, MD, PhD, Professor titular, Dept. de Neurosciências, Universidade de Guadalajara, Faculdade de Medicina de Guadalajara. Orientador em Neurologia e EEG no Hospital Civil de Guadalajara e Estudos de Pós-graduação em GREM: Biologia Celular, Neurobiologia. Ex-Presidente da Liga Mexicana Internacional Contra Epilepsia, Presidente da Sociedade de Neurologia Pediátrica Mexicana. Email: jgomezp@udgserv.cencar.udg.mx


Traduzido do espanhol por: Marcelo Sabbatini


Núcleo de Informática Biomédica
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