O Terrorismo, o Nacionalismo e a Mente Humana

Marco Montarroyos Calegaro, MSc





O terror nos E.U.A. deixou o mundo perplexo, despertando uma enxurrada de análises políticas e econômicas, embora muito pouco de satisfatório tenha sido dito sobre as motivações humanas subjacentes a este episódio. Neste ensaio, pretendo enfocar as forças psicológicas motivacionais envolvidas em dois importantes ingredientes desta lamentável página da história que estamos vivenciando: a questão dos ataques terroristas suicidas e a reação nacionalista norte-americana. Argumento que os dois fenômenos de comportamento repousam em raízes evolucionárias semelhantes, cuja compreensão demanda apoio em um modelo da arquitetura da mente humana.

O naturalista inglês Charles Darwin causou um impacto tremendo no pensamento contemporâneo com a teoria da seleção natural. Esta teoria permite compreender não só a evolução da vida no aspecto anatômico e fisiológico –o desenho em diferentes espécies de órgãos adaptados ao ambiente (pulmão, asas, braços, etc) -como também do comportamento e processos mentais –o impulso para a guerra ou o sentimento de vingança. A idéia central é bastante simples, mas de profundas implicações, ainda não bem compreendidas. Darwin percebeu que, a partir da descendência com modificações, a seleção natural separa, a cada geração, aqueles que conseguiram sobreviver e se reproduzir, deixando para trás as criaturas que não conseguiram passar seus genes às futuras gerações. O comportamento dos seres vivos modernos foi esculpido, geração após geração, por uma longa história evolutiva, onde a capacidade de deixar o maior número de descendentes selecionou as características atualmente presentes.
Bem, mas como poderíamos explicar a evolução da tendência a um comportamento como uma ação terrorista suicida? Um suicida não está justamente eliminando suas possibilidades de ter seus genes representados nas futuras gerações? Isto parece contrariar a lógica da evolução.

A chave para compreender esta aparente contradição está na cultura em que os suicidas são criados, e na forma como esta interage com o desenho de nosso cérebro, um órgão também talhado pela seleção natural. A cultura fornece informação sobre os valores e o cérebro processa estas informações movendo o comportamento na direção destes valores –embora as disposições da mente humana tenham firmes alicerces biológicos, é somente com base no aprendizado do meio sociocultural que é possível imprimir direção ao comportamento. Em outras palavras, nossa mente está estruturada para perseguir os valores do grupo ao qual pertencemos, mas o que é especificamente valorado depende dos costumes experienciados em cada cultura.

Quais são os valores na cultura dos homens-bomba? Candidatar-se a suicida pela causa do grupo garante um lugar privilegiado e elevado prestígio extensivo a parentes, alem de recompensas espirituais depois da morte. É um gesto percebido como honrado e altruísta nesta cultura. Nossa mente foi desenhada para buscar ascensão social, e esta busca deve ser orientada pelas peculiaridades do que é valorizado em cada ambiente. Os pilotos suicidas Kamikases também agem com o que é percebido pelos japoneses como elevado senso moral, sacrificando sua vida em prol do bem do grupo em disputa com o inimigo. É um gesto interpretado como nobre e digno, merecedor de aprovação social e contemplado com respeito e consideração.

O impulso de subir na hierarquia social não é uma exclusividade humana. De modo geral, em animais sociais observa-se prêmios darwinistas (maior número de descendentes) para aqueles com maior status. Os animais socialmente dominantes tem maior acesso sexual as fêmeas, obtém mais recursos territoriais e alimentares, e acabam ganhando a corrida evolutiva passando maior número de genes às futuras gerações. Em seres humanos, existe um forte impulso motivacional em direção à ascensão social. Nas culturas que estimulam o suicídio em prol de uma causa, este impulso ganha proporções distorcidas quando impele seu portador à própria destruição. O suicídio terrorista seria explicado, nesta ótica, como uma aberração da tendência de ser valorizado pelos membros do grupo. O mesmo ímpeto que é visto, em todas as épocas e lugares, nos jovens que orgulham-se ao defender a pátria na guerra, impulsiona da mesma forma o gesto de dar a vida em ato suicida.

Se adicionarmos a esta equação o componente que os cientistas de comportamento chamam de “aptidão inclusiva”, a psicologia desta conduta fica mais clara. A partir da década de 60, percebeu-se que um comportamento altruísta pode evoluir por favorecer a sobrevivência e reprodução não só do indivíduo, mas também do seus familiares e parentes. Estes partilham um percentual  dos genes do sujeito –cerca de metade para irmãos, filhos, pais, um quarto para sobrinhos, tios, avós, etc. Ou seja, arriscar-se para garantir a sobrevivência de parentes, especialmente os filhos, tem sentido na lógica da seleção natural, pois os genes acabam sendo repassados às futuras gerações por um caminho indireto. Vale lembrar que é exatamente este tipo de efeito que ocorre com os familiares dos suicidas, que são beneficiados socialmente de várias formas, inclusive financeiramente.

A essência da guerra, segundo o austríaco Konrad Lorenz, bi-laureado com o prêmio Nobel, é o que este autor chama de “entusiasmo coletivamente agressivo”, um padrão comportamental disparado por situações sociais que ameaçam os valores do grupo, mobilizando forte ímpeto de defesa. Quais valores são defendidos depende do que é aprendido na cultura em questão. Podemos sentir a profundidade deste impulso humano na união em torno da defesa de um valor grupal mesmo em se tratando de algo abstrato e arbitrário, como torcer por um time de futebol. Quando uma nação se une contra um inimigo, forças psicológicas poderosas e muito antigas na evolução são mobilizadas de forma intensa; os sujeitos são tomados pela sensação subjetiva de elevação e jogam tudo para o alto para obedecer ao “dever sagrado” (jihad, em árabe).
A reação norte-americana também se baseia nestas forças propulsoras, só que incrementadas por outro curioso legado de nossa evolução: o impulso de retribuição ou sentimento de vingança. Nas interações que estabelecemos, podemos ser altruístas, cooperando, ou egoístas, enganando e trapaceando competitivamente. Alguns cientistas sociais estudam a evolução da cooperação e da competição através de simulações computadorizadas, onde criam programas que tentam sobreviver e se reproduzir o mais possível, a semelhança da vida animal. Nestas simulações, o programa vencedor, após milhares de gerações simuladas em computador, foi o chamado “olho por olho” (tit for tat), cuja regra básica é, depois de interagir com outro programa em uma primeira rodada, retribuir generosidade com cooperação, e exploração com vingança na próxima rodada. Segundo este argumento, a evolução teria selecionado o impulso de se vingar devido a funcionalidade deste padrão em promover a reprodução de nossos antepassados, pois assim evitaríamos ser trapaceados duas vezes, uma vez que, a partir de uma interação negativa, passaríamos a retribuir, nos protegendo e defendendo. No entanto, manteríamos alianças com aqueles suficientemente colaborativos –“olho por olho, dente por dente”.

O sentimento de vingança parece ser um universal humano. O nacionalismo norte-americano é exacerbado com o impulso vingativo, surgindo uma tremenda coesão interna face a ameaça do inimigo –partidos que se digladiavam aprovaram rápida e consensualmente decisões orçamentárias, políticas e militares a este respeito.
Segundo a visão maniqueísta do governo dos EUA, a retaliação americana aos ataques terroristas é uma luta da “liberdade” contra o mal - os discursos de Bush lembram a cena de “Independence Day” onde o presidente (do filme) arranca aplausos entusiásticos da multidão com todo aquele nacionalismo inflado piegas norte-americano. Desta vez não são extraterrestres que ameaçam a humanidade, mas sim psicopatas barbudos. Será mesmo que os norte-americanos são os mocinhos e os terroristas os bandidos?
Em essência, tanto o patriotismo norte-americano e o sentimento de vingança que toma conta da nação como o terrorismo suicida são fenômenos aparentados, que estão fundados no mesmo mecanismo da mente humana que garantiu aos nossos antepassados a continuidade evolutiva. Fomos programados para defender nosso território e a cultuar os valores de nosso grupo social, reagindo com indignação e contra-atacando ao que é percebido como ameaça. O que ocorre com os terroristas suicidas é uma profunda lavagem cerebral que usa técnicas sofisticadas de doutrinação muitas vezes desde a infância (ver o editorial “A mente do terrorista suicida” para uma excelente análise destas técnicas de condicionamento) para convencer o sujeito de que está do lado do bem, e o inimigo, do mal. Deste modo, na lógica do terrorista, suas ações são justificadas.

O perfil psicológico de um terrorista nada tem a ver com o estereótipo de um psicopata. Aliás, não existe um perfil psicológico claro, pois terroristas não tem distúrbios mentais –são pessoas comuns, em geral jovens inseguros com forte desejo de afiliação a um grupo. Um psicopata não trabalha em equipe e não tem lealdade aos valores de seu grupo social, sua motivação é intrínsecamente egocêntrica. Já para um terrorista suicida, a motivação é altruística - o gesto de dar a vida pela causa do grupo a que pertence é valorizado na cultura dos homens-bomba. Em outras palavras, os terroristas estão convictos de que estão do lado do bem ao atacar o “grande Satã”. O Islamismo tem orientação pacifista e não respalda a violência, e a barbárie dos atentados só é passível de justificativa através de um processo de deformação, feitas por segmentos fanáticos, nos preceitos desta religião.

 O mesmo impulso que leva um jovem criado em uma cultura de fanatismo religioso a defender os valores que aprendeu desde pequeno também propulsiona um soldado norte-americano a  disparar armas “inteligentes” (será alguma arma inteligente?) contra algumas barracas miseráveis para defender a “liberdade”. Experimentos clássicos de psicólogos sociais como Milgran, Asch e Zimbardo apontaram para a extrema facilidade de manipulação do comportamento humano, demonstrando que pessoas comuns podem agir de forma cruel e desumana se submetidas a pressões para conformidade com  as normas do grupo ou figuras de autoridade. Nesta guerra não existem mocinhos nem bandidos, somente seres humanos defendendo seus valores e suas crenças.

O desequilíbrio entre ricos e pobres em nível mundial poderia ser dramaticamente reduzido com medidas cooperativas e a injeção dos mesmos recursos destinados atualmente para consertar os efeitos deste desequilíbrio. Seria mais barato e inteligente evitar o “efeito bumerangue” e buscar uma lógica de desenvolvimento global com justiça social, onde os interesses das nações fossem administrados pela comunidade internacional de forma a viabilizar o crescimento conjunto. No entanto, o sonho de um desarmamento gradual e da extinção progressiva dos conflitos armados foi desmanchado com a seqüência de acontecimentos cercando os ataques terroristas. O mundo mergulha em sombria incerteza quanto ao futuro, enquanto enorme volume de energia e recursos são canalizados para os conflitos.

A arquitetura da mente humana é imperfeita e herda de nosso passado evolucionário como legado as disposições para a guerra e a vingança, o fanatismo suicida e o nacionalismo, com o agravante de que não manipulamos mais paus e pedras, mas sim armas atômicas, químicas e biológicas. Sabemos que poderíamos solucionar os problemas sociais do mundo se os recursos destinados a indústria bélica fossem remanejados dentro de uma ética de maior eqüidade, mas lamentavelmente, apesar de todo avanço científico e tecnológico, somos ainda conduzidos por impulsos primitivos e nos comportamos como primatas.

Resta a esperança no predomínio da capacidade de reflexão, também produto da evolução, só que muito mais recente e característica da linhagem hominídea. Assim como abrigamos nas profundezas de nossa mente tendências destrutivas, temos também o potencial de refletir e gerenciar nosso comportamento imprimindo a direção que se afigura como eticamente mais desejável. A irracionalidade dos impulsos discutidos pode ser cerceada pela análise reflexiva das conseqüências de ações extremadas. O futuro indicará se as contradições na estrutura mental humana nos conduzirão à ruína ou se a capacidade de refletir e avaliar o impacto de nossas decisões, uma aquisição evolucionária recente e ainda tênue frente ao vigor das disposições mais primitivas, sobrepujará os viéses de agressão e vingança que herdamos de nossos antepassados. Não somos inerentemente egoístas ou altruístas; temos o potencial para a destruição, mas também carregamos o instrumental para a grandeza.
 

O Autor

Prof. Marco M. Calegaro, M.Sc.
Psicólogo Mestre em Neurociências - UFSC 1998
Professor da Universidade Regional de Blumenau
Email: marcalegaro@terra.com.br


Publicado em 7.Nov.2001
Copyright 2001 Universidade Estadual de Campinas
Revista Cérebro & Mente
Uma Iniciativa: Núcleo de Informática Biomédica