Síndrome de Deficiência da Recompensa
Jorge Martins de Oliveira, MD, PhD
Em
1954,o psicólogo americano James Olds, ao realizar experiências
em um rato, para estudar o "estado de alerta, colocou, por engano, os eletrodos
em uma área profunda do cérebro, tida como responsável
pelas reações emocionais (veja o nosso artigo Sistema
Límbico: O Centro das Emoções).
Os referidos eletródios estavam conectados, através de arames, a uma alavanca que permitia, ao animal já devidamente treinado, acioná-la, sempre que desejasse. E, então, Olds verificou que o roedor passou a acionar o dispositivo freneticamente, como se, da estimulação cerebral resultante, lhe adviesse uma imensa satisfação (Ref.1) |
FIG. 1 - RATO NA CAIXA DE SKINNER. Típico cenário de laboratório onde se processa a auto estimulação, através da qual o animal obtém a sensação de recompensa. (Do artigo de Blum e colaboradores - Ref.2) |
Repetindo
a experiência com outros ratos, idênticos resultados foram
obtidos, sendo que alguns chegavam a acionar a alavanca 4 a 5 mil vezes
em uma hora.
E o prazer que obtinham devia ser de uma tal intensidade, que nem a fome nem estímulos dolorosos conseguiam interromper o processo. Eles somente paravam de se auto estimular quando vencidos pela exaustão. Olds havia descoberto as áreas cerebrais responsaveis pela sensação de recompensa! |
FIG. 2 - A CASCATA DA RECOMPENSA |
Pesquisas
posteriores revelaram que a sensação de recompensa está
ligada a um complexo sistema "em cascata" (Fig.2), envolvendo diversas
estruturas situadas na profundidade do encéfalo e vários
neurotransmissores.
E que o resultado final do processo consiste na ativação de uma via dopaminérgica meso-límbica, que começa na área tegmental ventral e termina em receptores de dopamina denominados D2, localizados nas membranas de neurônios situados no núcleo accumbens e no hipocampo (Ref.3 e 4). O processo, tal como idealizado por Blum at al. (Ref.2) se inicia no hipotálamo, com a atividade excitatória de neurônios serotoninérgicos. Isto leva à liberação do peptídeo opioide meta-encefalina na área tegmental ventral, o qual inibe a ação inibitória do GABA sobre os neurônios secretores de dopamina. Desinibidas, as células dopaminérgicas "disparam" no feixe meso-límbico e a dopamina termina por se acoplar com seus receptores D2, no hipocampo (via amígdala) e no núcleo accumbens onde, mais uma vez, a encefalina neutraliza a ação inibitória do GABA. Promove-se, assim, a despolarização dos neurônios dopaminérgicos (pós-sinápticos) nestas duas áreas, o que completa a "cascata" e gera a sensação de recompensa. Usualmente, estando íntegras as estruturas do sistema "em cascata" e os neurotransmissores envolvidos funcionando normalmente, a "recompensa", expressa em sua forma mais significativa : sensação de bem-estar, é obtida se certas condições básicas são satisfeitas. |
Nas
espécies menos desenvolvidas, tais condições são
bastante simples : quando em estado de saúde, existe o sentimento
de recompensa se o animal se sente em segurança em seu nicho ecológico,
está alimentado e sem sede, e se mantém aquecido (melhor
seria dizer : "termoestável").
À medida que se sobe na escala zoológica, novas exigências se juntam às anteriores : satisfação sexual e reciprocidade afetiva, bem como aceitação e posicionamento dentro do seu grupo ou da "família". Estas duas últimas, bem caracterizadas entre os mamíferos superiores e, principalmente, nos primatas. O homem exige ainda, pelo menos, duas coisas mais : reconhecimento social e estabilidade econômico-financeira (Ref.5). No entanto, em humanos (e talvez também em outras espécies), quando baixa o nível de dopamina nos neurônios pós-sinápticos da via meso-límbica, quer por diminuição da produção desse neurotransmissor na área tegmental ventral, quer por redução do número de receptores D2 no hipocampo e/ou no núcleo accumbens, aquelas condições, acima mencionadas, que atuavam como autênticos estímulos "naturais", já não se mostram suficientes para gerar sensações prazeirosas ou de bem-estar. O indivíduo passa, então, a buscar, através de alterações comportamentais, em geral de natureza perversa, e/ou pelo consumo de certas substâncias químicas, o aumento da liberação de dopamina para o sistema límbico. Mas a resposta é apenas temporária e a exigência pelos químicos ou pelas atitudes perversas necessita aumentar, mais e mais, para que o indivíduo obtenha, através de alguma sensação de prazer, por menor ou fugaz que seja, alívio para sua ansiedade ou depressão. Esta situação, de caráter nitidamente compensatório, configura a SÍNDROME DE DEFICIÊNCIA DA RECOMPENSA (SDR). |
O RECEPTOR D2
O
receptor D2 é codificado por um gene, denominado A, cujo locus está
situado no braço longo do cromossomo 11, entre as posições
q22 e q23.
FIG.3 - Localização do gene A que codifica o receptor D2 |
O
gene A apresenta quatro variantes ou alelos : A1, A2, A3 e A4. A3 e A4
são extremamente raros. Os alelos A2 e A1 estão presentes
em 25% e 75% da população, respectivamente.
O alelo A1 é responsavel, em alguma fase da vida, via de regra na infância ou na adolescência, pela redução do número de receptores D2 e, consequentemente, deve estar associado com os distúrbios compulsivos e impulsivos da Sindrome de Deficiência da Recompensa. A diferença de concentração de receptores D2 entre portadores dos alelos A2 e A1 pode ser observada nas Figs. 4 e 5.
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FIG. 4 - ALELO A2 COM UM NÚMERO NORMAL DE RECEPTORES D2 |
FIG. 5 - ALELO A1 COM UM TERÇO DO NÚMERO NORMAL DE RECEPTORES D2 |
Quando
existe deficiência no número de receptores D2 (como se vê
na Fig. 5), a dopamina se acumula na fenda sináptica e acaba sendo
recaptada pelo axônio pré-sináptico.
Isto faz com que, na área tegmental ventral, por um mecanismo de "feed-back" negativo, os neurônios dopaminérgicos diminuam ou suspendam a formação e liberação de dopamina. Por razões e mecanismos ainda não conhecidos, resulta que, quando ocorre o bloqueio dopaminérgico, os neurônios nor-adrenérgicos no núcleo do locus cérulus passam a liberar uma maior quantidade de nor-adrenalina para a região da amigdala cerebral. A consequência é a instalação de um quadro de ansiedade que, com o passar do tempo, acaba gerando um estado depressivo concomitante. Esses são os sintomas primários da SDR que, possivelmente, formam o pano de fundo sobre o qual irão se fixar os demais distúrbios observados nesta síndrome. |
CARACTERÍSTICAS
CLÍNICAS DA SÍNDROME DE DEFICIÊNCIA DA RECOMPENSA
A
SDR compreende, além de um estado de constante ansiedade, as vezes
acompanhado de depressão, uma ampla gama de distúrbios compulsivos
e impulsivos :
COMPULSIVOS 1 - Uso e abuso de substâncias químicas que parecem induzir ao aumento da liberação de dopamina para o sistema límbico : álcool, cocaína, cafeína, nicotina (tabagismo inveterado) e carbohidratos(obesidade). 2 - Prática obsessiva de jogos de azar. Os pesquisadores do assunto admitem que o risco e a expectativa envolvidos nessa prática geram, nos obcecados, um estado de euforia comparavel àquele sentido por um viciado após a inalação de cocaína (Ref.6). IMPULSIVOS 1 - Hiperatividade 2 - "Deficit" da atenção (Observado principalmente entre meninos) 3 - Síndrome de Tourettte (Uma condição caracterizada por múltiplos tics musculares incontroláveis, emissão de ruídos incompreensíveis e forte propensão para proferir insultos e palavras de baixo calão). Não existe, pelo menos até o momento, qualquer evidência de que os distúrbios impulsivos sejam causados por deficiência de dopamina no sistema límbico. No entanto, a sua vinculação com a SDR é presumida pela elevada incidência de portadores do alelo A1 entre os que apresentam tais distúrbios. Além disso, a Síndrome de Deficiência da Recompensa parece também associada a inúmeros casos de :
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TENTATIVAS
TERAPÊUTICAS PRELIMINARES
Não
há, por enquanto, muito com que contar e, de certo, ainda um longo
caminho a percorrer, no que concerne o tratamento da Sindrome de Deficiência
da Recompensa. No entanto, duas abordagens, de concepções
distintas, para não dizer opostas, têm sido consideradas pelos
pesquisadores :
A primeira consiste em promover o aumento da formação e liberação de dopamina para as regiões alvos do sistema límbicos (núcleo accumbens e hipocampo). Isto pode ser obtido quer pelo uso de agonistas dopaminérgicos, como a bromocriptina ou pela administração de encefalinas e dos precursores de serotonina e dopamina (L-triptofano e L-tirosina). É fato comprovado que pacientes tratados com a bromocriptina mostram sensível redução da ansiedade e da compulsão pela ingestão de álcool (Ref.7). Já a segunda abordagem visa fazer com que o paciente não mais se sinta "recompensado" pelo álcool ou pela cocaína, o que se consegue pelo bloqueio dos receptores de dopamina (e talvez, também, de outros transmissores que induzem ao prazer e à satisfação) No caso do álcool, tem sido usado o anti-opiáceo Naltrexona (Ref.8). Em relação à cocaína, preconiza -se o aumento da produção de GABA, pela administração do anti-epilético Vigabatrin (Ref.9). Se atentarmos para a "cascata da recompensa", a explicação fica evidente, já que o GABA impede a captação da dopamina pelos seus receptores, enquanto que os opiáceos (encefalinas), ao inibir o efeito inibitório do GABA, liberam a dopamina. Assim, teoricamente, pelo menos, a ausência de dopamina nos neurônios pós-sinápticos do núcleo accumbens e do hipocampo, impossibilita que a cocaína ou o álcool promovam a sensação de recompensa. A pessoa, então, perde a necessidade física dessas drogas , já que elas não mais lhe proporcionam qualquer satisfação. Porém, cessada a sensação de recompensa, é de se esperar que se instale a síndrome de abstinência. E então, vem a inevitável pergunta : o que fazer ? Em primeiro lugar, considerar que o bloqueio dopaminérgico nào pode ser prolongado. Senão o paciente entra em "anedonia" à qual, quase certamente, seguir-se-á um estado depressivo. Portanto, deveremos re-estimular a formação e liberação de dopamina. A melhor maneira de fazê-lo talvez seja através da administração de certas encefalinas - sugerimos o Tramadol que é, também, um anti-recaptador de serotonina (logo, um anti-depressivo), ou de precursores da própria dopamina, como a L-tirosina. Paralelamente, algum tipo de psicoterapia, visando convencer a pessoa de que existem, além do álcool, cocaína e outras drogas igualmente deletérias, outros meios, medicamentosos ou não, de se obter satisfação, prazer e bem-estar, as expressões básicas do sentimento de recompensa. |
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O
caráter polimorfo da SDR fica demonstrado pela constatação
de que a hiperatividade acentuada e o "deficit" de atenção
em crianças e pré-adolescentes, bem como a personalidade
anti-social em adultos, estão, frequentemente, associados ao abuso
de álcool e cocaína.
Por outro lado, o comportamento sociopata na infância e na adolescência prediz uma tendência à personalidade anti-social, alcoolismo e abuso de drogas na idade adulta. O aprofundamento dos estudos sobre o gene que codifica o receptor dopaminérgico D2 se justifica, diante de seu envolvimento na gênese de um dos mais graves problemas médico-sociais de nossa época. Talvez a engenharia genética seja a melhor arma de que poderá dispor nosso arsenal terapêutico para erradicar ou minimizar a trágica compulsão para álcool, cocaína e similares. |
Autor:
Jorge
Martins de Oliveira, MD, PhD
Professor Titular e Mestre da
UFRJ.
Livre-Docente da UFF. Coordenador
Científico e Diretor
do Departamento
de Neurociências do Instituto
da Pessoa Humana (RJ).
Fellow em Pesquisa pelo Saint
Vincent Charity Hospital, Cleveland, USA.
Membro Titular da Academia Brasileira
de Medicina Militar.
Membro da Academia Brasileira
de Médicos Escritores,
Diplomado pela Escola Superior
de Guerra (ESG). Membro do Corpo
Editorial da revista Cérebro
& Mente.
Autor de "Princípios
de Neurociências", entre diversos outros.
Email: olivermarti@olimpo.com.br