"Animus idem eadem idem materia"
A alma é a mesma coisa que a matéria
Na última década do século XVIII, o mundo estava prestes a iniciar uma revolução, tanto na sociedade quanto na ciência. O estudo do cérebro e da mente não era exceção. Um novo paradigma estava em gestação: a eletricidade estava substituindo a mecânica de uma vez por todas como a principal explicação física para a função do sistema nervoso.
Até aquela época, o principal modelo da função cerebral era baseado nas idéias de René Descartes (1596-1650), um dos maiores filósofos ocidentais de todos os tempos. Ao analizar fenômenos simples, como o movimento involuntário que ocorre em um membro quando alguém queima sua mão ou pé em uma chama, Descartes propôs a idéia do arco reflexo, e corretamente identificou seus componentes: a sensação de dor, a condução da mesma pelos nervos que levam ao sistema nervoso central, os nervos motores sendo excitados e finalmente os músculos que são responsáveis pela açào. Ele também reconheceu a importância da representação mental do mundo externo no cérebro. Ele escreveu: "A chama que queima a mão é transmitida pelo sistema nervoso até o cérebro como um estímulo, o qual atormenta o homem na forma de uma pequena chama."
Entretanto, ao propor um mecanismo para esta seqüência, Descartes era constrangido pelo conceito medieval de que o sistema nervoso era um conjunto de tubos hidráulicos. Influenciados por Aristóteles e Galeno (129-199 BC), os sábios daquela época achavam que a matéria cerebral era menos importante que os seus ventrículos, os quais se imaginava que fosse uma espécie de reservatório de fluidos e a séde da mente racional. De acordo com o autor Stephen Jones (The Brain Project), Galeno expandiu a teoria dos humores dos gregos antigos, e a combinou com o modelo aristotélico da alma, propondo que "o cérebro era a séde da alma racional. Ele recebia espírito vital vindo do coração, e o misturava com o humor sangüíneo. O cérebro separava então o espírito animal dessa mistura e o armazenava nos ventrículos cerebrais, distribuindo-o para todo o corpo através dos nervos. Este fluido viajava através dos nervos, aos músculos e órgãos, de maneira a controlar todas as atividades corporais. A alma racional era considerada a responsável pela imaginação, pelo raciocínio e pela memória."
Descartes propôs que os nervos conduziam o estímulo até o cérebro graças a uma onda de propulsão do fluído em seu interior oco. Bombeados com esse fluido, os músculos se inflavam, levando à contração. Sua inspiração eram as maravilhosas fontes de Versailles. Ele escreveu em seu livro, Traite de l'Homme (1664): "E verdadeiramente podemos comparar muito bem os nervos da máquina que estou descrevendo aos tubos dos mecanismos das fontes; seus músculos e tendões a vários outros motores e molas que servem para mover esses mecanismos; e seus espíritos animais à água que os movimenta; sendo que o coração é a sua fonte, e as cavidades do cérebro, seu encanamento principal de água. "
Como Descartes era apenas um filósofo, e não um cientista experimental, ele não se preocupou em checar se tudo aquilo era verdade! No entanto, experimentalistas como o anatomista inglês Thomas Willis (1621-1675), também acreditavam no modelo hidráulico, pois embora eles fossem capazes de dissecar o cérebro com grande grau de detalhe, eles não conseguiam enxergar ou medir as suas funçòes. Por exemplo, ele especulou que se o cérebro parasse de receber sangue pela bomba cardíaca, então "a função nervosa cessaria, porque os espíritos vitais não conseguiriam alcançar os ventrículos para que o sangue seja convertido aos espíritos animais essenciais."
A existência teórica de um fluido orgânico energético, diferente da água, era especulado por muitos filósofos e naturalistas da época (final do século XVII). O grande gênio científico Sir Isaac Newton escreveu em Principia Mathematica (1687) que "existe um espírito certamente muito sutil que preenche e se esconde em todos os corpos maiores," e que "todas as sensações são excitadas, e todos os membros do corpo do animal se movem ao comando da vontade, ou seja, por meio das vibrações deste espírito, que se propagam mutualmente ao longo dos filamentos sólidos dos nervos, desde os órgãos exteriores dos sentidos até o cérebro, e do cérebro até os músculos.." Na época, a eletricidade ainda não era um assunto de muito interesse científico!
O próprio Albrecht von Haller (1708-1777), um importante professor de anatomia e medicina em Göttingen, Alemanha, também chegou a especular se esse "fluido nervoso" e se a "matéria elétrica" estaria presente nos "espíritos animais". Mas nada disso era ciência rigorosa, e foi apenas na última década do século XVIII que se tornou possível uma abordagem experimental ao problema da condução nervosoa. Os pioneiros nesse brilhante capítulo da história da neurociência seriam dois grandes cientistas italianos, amigos e vizinhos, Luigi Galvani and Alessandro Volta.
Prof. Renato M.E. Sabbatini, PhD é neuroientista e especialista em informática
médica, e é doutor em neurofisiologia pela Universidade de São Paulo, Brasil, e pós-doutor
pelo Instituto Max Planck de Psiquiatria, em Munique, Alemanha. Ele é o diretor atual do Núcleo de
Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas, e coordenador da disciplina de Informática
Médica da Faculdade de Ciências Médicas da mesma universidade, onde é professor livre-docente
do Departamento de Genética Médica. . Email: sabbatin@nib.unicamp.br