Revista Argentina de
Neurociencias

A MEMÓRIA

Entrevista com Ivan Izquierdo

por
Ignacio Brusco, MD; Diego Golombek, PhD e Sergio Strejilevich, MD

Atualmente vivendo em Porto Alegre, o argentino Ivan Izquierdo é um dos maiores pesquisadores do mundo na área de fisiologia da memória e seus artigos e livros já são parte imprescindível das bibliografías básicas dos trabalhos dedicados ao tema. Este atrativo personagem converteu o nosso encontro em um momento adequadamente estimulante, desses que deixam memórias !

Nesta entrevista, concedida com exclusividade para RAN, e reproduzida em  "Cérebro & Mente", o Prof. Izquierdo responde a questões palpitantes sobre a neurobiologia da memória, tais como:


RAN: O que é a memória? Aonde nos vai levar a estratégia reducionista, que em última análise é a que todos nós utilizamos na ciência ?

Bem, está nos levando a um determinado destino, que não sei dizer se é bom ou não, mas que sabemos ser cada vez mais exato. Creio que conhecemos básicamente as áreas cerebrais envolvidas nos principais tipos de memória. Uma delas, a memória de trabalho, que é uma memória muito rápida, pois dura segundos (por exemplo, se alguém nos dita um número telefônico; o qual discamos e logo o esquecemos), tem sua localização na área prefrontal.

Há varios estudos recentes, feitos básicamente por três grupos, Fuster e Goldman Rackick nos Estados Unidos e Sakata, no Japão (que provavelmente é o melhor dos três) que encontraram circuitos neuronais no córtex prefrontal e no córtex anterolateral, sobretudo (há outras áreas envolvidas também), as quais já se conhece em parte como funcionam, e o que fazem durante os diferentes tipos de memória de trabalho.

Portanto há dois grandes grupos de memória que se podem subdividir o não. Um é o da memória de procedimentos, de atos motores o de concatenações de atos motores, como por exemplo, saber escrever à máquina, saber nadar, esse tipo de coisas. Essa memória tem uma localização cortical em parte, pelo menos inicialmente, mas depois envolve os gânglios basais e o cerebelo. É a chamada memória procedural. Conhecemos as suas vias, a sua arquitetura, digamos, mas não quem a "habita", não conhecemos muito bem como funciona. A outra é a memória declarativa, que é o que todos chamam comumente de memória. É a memória de fatos, de eventos, de seqüências de fatos e eventos, de pessoas, de faces, de conceitos, de idéias, etc. Esta é memória sobre a qual mais sabemos do ponto de vista bioquímico e neuroanatômico.

As memórias declarativas se formam em primeiro lugar em uma região do lobo temporal, o hipocampo, que tem muitas fibras de conexão com o córtex entorrinal, que está localizada logo abaixo dele. Conhecemos até certo ponto a natureza dessa conexão, ou seja, a informação que irá converter-se eventualmente em memórias no hipocampo entra pelo córtex entorrinal, que recebe fibras de todas as vias sensoriais, de praticamente todo o córtex.

Quando a memória é de tipo aversivo, ou envolve emoções, um grau de alerta muito grande, ou algum grau de estresse, entram em jogo duas estruturas cerebrais adicionais: a amígdala, que está no próprio lobo temporal, perto do hipocampo, e que tem conexões bidirecionais com o mesmo; e talvez, no homem pelo menos, a região corticomedial do córtex prefrontal, que possivelmente supre ou complementa as funções da amígdala. O hipocampo efetua uma série de processos bioquímicos que eventualmente servem para fortalecer seus conexões com outras estruturas. Isto é feito através do subiculum-córtex entorrinal. Dependendo do tipo de memória, a via envolverá, mais tarde, o córtex parietal associativo. Isso está bem demostrado e há boa evidência para estabelecer que noutros tipos de memória pode chegar a intervir os córtices associativos frontal, occipital e temporal .

A memória mais bem estudada é uma que ocorre em um modelo muito simples, utilizando ratos. O rato aprende a evitar de entrar em um lugar onde recebe uma punição por isso, um choque eléctrico. É uma memória de formação rápida -se forma em segundos-, mas que pode durar toda a vida. No momento que o rato adquirir essa memória, entra em jogo o hipocampo, modulado pela amígdala, a qual é modulada, por sua vez , pelo septo medial, dando início a uma extensa sequência de processos bioquímicos. Aos trinta minutos, mais o menos, se ativa o córtex entorrinal durante horas e essa ativação é necessária para a memória. Se se bloqueia esse circuito, a memória não se forma, necessitando-se um processo bioquímico extenso no hipocampo, de varias horas, e algo que entre em paralelo, e um pouco depois, temporalmente, na área entorrinal. Meia hora mais tarde entra em jogo o córtex parietal posterior. Ou seja, sem essa sequência de três estruturas e sem a cadeia bioquímica que ocorre no hipocampo paralelamente durante a ativação, não há memória do evento.

Se pedimos ao animal que evoque a memória um dia depois de aprendido o estímulo, e fazemos uma injeção de antagonistas glutamatérgicos e de NMDA no hipocampo, amígdala, área entorrinal ou parietal, se cancela a memória; caracterizando assim o circuito necessário para recuperar a memória. É de se crer que memórias menos aversivas não envolvam a amígdala, por exemplo, e que outras mais aversivas envolvam o septo também.

Agora, se pedimos ao animal que evoque a memória vinte dias depois do aprendizado, o quadro é mais o menos o mesmo, essas quatro estruturas estão participando. No entanto, se fizermos o teste de memória trinta dias depois, o hipocampo e a amígdala já não participam mais; podemos bloqueá-lo ou não com antagonistas glutamatérgicos e a memória continua igual. Por outro lado, se se bloqueia as áreas entorrinal ou parietal a memória não é recuperada. Portanto, o circuito que é necessário para evocar a memória e onde possivelmente ela esteja radicada, envolve, aos trinta dias depois de adquirida: o córtex entorrinal e o córtex parietal, mas não mais os lugares onde primeiro se formou, ou seja; hipocampo e amígdala.

Possivelmente o circuito da memória de maior duração começa na área temporal, e envolve outras estruturas, posteriormente. Não sei quantas -nós estudamos apenas a área parietal posterior- mas há muita evidência para outros tipos de memória de que também estão envolvidos as áreas occipital associativa e algumas regiões do córtex prefrontal. É muito provável que a memória, além de de fazer uma cópia, por assim dizer, do hipocampo para a área entorrinal e para a área parietal, deve fazer cópias também para outros lugares. Aqui já não conhecemos praticamente nada sobre os mecanismos dessas cópias, e apenas um pouco sobre os locais do cérebro onde ocorrem.

RAN: Evidentemente não somente há mais dados, como também tem ocorrido uma renovação no próprio conceito de a memória (o da memória de trabalho é um bom exemplo). Até que ponto a pesquisa básica tem impactado nossos conceitos a esse respeito ?

Bem, há varias contribuções da ciência básica nesse sentido, e muitas mudanças têm ocorrido. Por exemplo, creio que uma das coisas mais importantes que nos tem permitido este conhecimento sobre o mecanismo bioquímico que ocorre na memória, bem sobre o que é necessário ocorrer no hipocampo para que possa haver a memória, é que nos tem levado a estudar em bastante detalhe e em forma bastante precisa a modulação desse mecanismo por vias claramente comprometidas com emoções, afetos, etc.

Por exemplo, há uma via dopaminérgica, atuando no hipocampo e na área entorrinal sobre receptores D1, uma via noradrenérgica, que atua no hipocampo e na área entorrinal sobre os receptores beta e uma via serotoninérgica, que atua no hipocampo e na área entorrinal, sobre receptores 5HT1A. Isto foi relativamente simples de estudar mas muito interesante e muito ilustrativo. Se implantam animais com cânulas no hipocampo ou na entorrinal, e por elas se injeta drogas agonistas ou antagonistas específicas para estas vias, em diferentes tempos depois que o animal aprendeu determinado estímulo: imediatamente depois, uma hora e meia depois, e três horas depois. Se o antagonista tem um efeito, quer dizer, que a via é ativa fisiológicamente e se o agonista tem um efeito, ou seja, que a via existe, os resultados são muito claros. As vias que usam receptores dopominérgicos D1 e as que usam receptores beta noradrenérgicos estimulam a enzima adenilciclase, que fabrica AMP cíclico, enquanto que as vias que usam receptores 5HT1A a inibe. Por isso, estudamos também o efeito de um estimulante dessa enzima que não atua através de receptores, e que se chama foscolin , bem como o próprio AMP cíclico, em uma versão solúvel, que é o 8-bromo-AMP cíclico.

O AMP cíclico atua em boa parte, ativando uma enzima chamada proteínaquinase. Esta, por sua vez, fosforila muitas coisas, entre elas, os proprios receptores glutamatérgicos bem como fatores de transcrição nucleares, principalmente um que se chama CREP. Por isso usamos também inibidores da proteínaquinase A. Para encurtar a historia, a evidência indica que no tempo que decorre desde o momento que o animal aprende até seis horas depois, a via dopaminérgica D1 e a beta adrenérgica estimulam brutalmente a memória. A palavra chave aí é brutalmente, porque é enorme a estimulação, muito forte. Um antagonista beta, por exemplo, o timolol, e um antagonista D1 experimental que se chama SCH23390, deprimem a memória como se o animal tivesse recebido um eletrochoque, ou seja, liquidam-na. O animal pode ser retreinado depois como se nunca tivesse vivido aquela situação, porque não se lembra de nada, não aprendeu, não grava nada. Isto é feito na área entorrinal imediatamente após o aprendizado, ou 3 e 6 horas depois do mesmo. Nove horas depois isso já não ocorre, ou seja, existe uma "janela" de tempo enorme na qual a memória é muito susceptível a estas vias.

Em resumo, há três fortes vias moduladoras da memória que se ativam, que são necessárias e que atuam durante muitissimo tempo sobre a memória, horas depois de ser adquirida. Este é um processo muito claro de ligação entre os processos cognitivos e as vias tidas como envolvidas em coisas que pelo menos antigamente se chamavam não cognitivas, emocionais...

RAN: A partir desse ponto, e especulando um pouco, poderíamos dizer que a hipótese de Antonio Damasio sobre o marcador somático poderia ser ampliada também como um tipo de memória...

Sim, claro, e o que Damasio diz no fundo tem uma base experimental muito clara. Nós e outros pesquisadores fomos capazes de demonstrar isso: a memória guarda emoções. Por exemplo, se neste momento cair o teto em nossas cabeças, ou algo do estilo, e sairmos correndo, nos lembraremos sempre desse episódio. A parte que é informacional ou cognitiva do episódio, ou seja, a visão do teto caindo, nossa corrida, etc. seguramente se registrará no hipocampo, na área entorrinal, etc. e a partir daí que ela será armazenada ou não. Seguramente ela será armazenada como uma memória declarativa. Agora, a parte emocional, o susto que isto nos daria, o terror que isto nos causaría (não necessariamente ligado ao teto que cai, mas ligado ao que aconteceu no momento); é armazenada pela amígdala e provavelmente pelo córtex corticomedial do área prefrontal no homem

RAN: Se o estresse é muito importante, já foi estudado como é que atuam estas estruturas inibindo a função de memória?. Ou seja, sabemos que uma situação de estresse muito importante, muito grave, pode produzir inibição, pelo menos de evocação de memória...

Não sabemos muito a respeito do córtex prefrontal nesse aspecto. Há elocubrações de Damasio que indicam que ele pode ter algo a ver com o momento imediatamente após a aquisição da memória. Na realidade, o que sabemos é o papel importantissimo da amígdala no momento imediato à aquisição. Por exemplo, quando a amígdala é hiperestimulada, ou quando está inibida, ocorre mais o menos a mesma coisa, ou seja, cancela as memórias, impede que se formem. Se poderia dizer que se algo não é suficientemente horrivel não o guardamos mas se é demasiado horrivel tão pouco o fazemos !

RAN: Há pouco estávamos lendo um trabalho no qual se pediu a pessoas se se lembravam com luxo de detalhes a tragédia do ônibus espacial Challenger. Poucos dias depois do mesmo, elas se lembravam do acidente com muitos detalhes. Mais tarde, lembravam-se de que houve algo que explodiu, e que foi muito terrivel, mas se lembravam muito pouco dos detalhes. O mesmo aconteceu com a guerra de Malvinas. Poderiamos pensar em uma via bioquímica que provoca um apagamento gradual dos detalhes?

Aí está! Nos esquecemos dos detalhes, mas nos lembramos que foi um momento muito dramático. E às vezes, inclusive, podemos até nem nos lembrarmos que foi um momento muito dramático. Em que ano foi, em 82 ou em 81? Já nos esquecemos dos detalhes. Mas veja: o que vai se apagando são os detalhes não emocionais. Cada vez que há uma circunstância que nos evoca algo emocional, que pode ser nossa própria vontade, evocamos os detalhes emocionais. Eu, por exemplo, me lembro claramente de momentos muito meigos com minha primeira namoradinha quando tinha 14 anos, mas não me lembro daa cara dela... Era uma mulher - ou um fragmento de mulher- muito doce...

RAN: Lembra-se da emoção...

Claro, a emoção; lembro que era muito linda; me lembro como me angustiava ficar esperando, ela virá hoje ou não ?... mas não me lembro muito bem como era, em si mesma, a pessoa à qual esperava.

RAN: Há processos mais agudos e mais importantes de apagamento de memória, não tanto a longo prazo, como por exemplo os casos de amnésia pós-traumática que acontecem depois de um atentado à bomba onde há pessoas que não se lembram de absolutamente nada Este poderia ser um processo de inibição de memória, e que fenómenos neuroquímicos estaríam implícitos?

Há varios mecanismos que se conhece. Um é uma hiper-secreção periférica de uma quantidade de hormônios que regulam a memória em seu momento inicial e o fazem através de mecanismos que envolvem a amígdala. ACTH, por sua própria conta, ou através da liberação de corticóides, adrenalina e noradrenalina periféricas, vasopressina, em parte, o fazem através de uma ação mediada pela amígdala - no caso dos corticoides também por uma ação sobre o hipocampo- e atuam nos momentos muito iniciais, nos primeiros minutos de formação da memória. Se eles não são liberados ou estão presentes em quantidades muito pequenas, a memória não é gravada. Mas se são hiper-secretados ou também injetados em quantidades muito grandes, apagam a memória, o animal não grava nada. Novamente, é aquilo que eu disse, que um certo nivel de alerta é necessário.

RAN: É interessante pensar sobre as razões evolutivas que devem ter favorecido a presença deste nivel de regulação, não acha?

Claro, uma sensação que produz emoções invariavelmente fortes é a dor intensa, e no entanto ela pode ser eaquecida. Podemos nos lembrar das circunstâncias em que ocorreram aquela dor, mas não da dor em si. O parto costuma ser doloroso, e às vezes muito doloroso, mas depois as mulheres se lembram apenas da cara do médico, de gestos da enfermeira, de detalhes da sala de parto, do momento em que viram o rostinho do filho pela primeira vez, etc., mas não da dor que sentiram. É por isto que as mulheres têm mais de um filho!

RAN: E que papel tem a liberação das endorfinas em tudo isso?

As endorfinas têm um efeito por um lado provavelmente analgésico e por outro, amnésico. Por exemplo há situações dolorosas ou em situações de novidade muito marcantes, como ao se colocar um rato em um novo ambiente (o rato é um animal que enxerga pouco, se guia muito pelo olfato e é pequeno, por isso se asusta quando está em um ambiente ao que não está acostumado). Neste animal, e nestas circunstâncias se libera betaendorfina cerebral em quantidades grandes e isto o faz se esquecer em parte do que está acontecendo naquele momento.

RAN: Mudando de tema, você acredita que a memória é digital, analógica, ou é um modelo mixto?

-Não tenho a menor idéia; creio que qualquer coisa que eu dissesse à respeito neste momento estaría inventando. O que sabemos de verdade é que os neurônios se comunicam entre si através de potenciais de ação. Esse é um fenómeno digital. Agora, as terminações sinápticas liberam uma quantidade maior ou menor de neurotransmisores segundo a densidade temporal deste potencial de ação, e este é um fenómeno analógico. O efeito do neurotransmissor liberado sobre os receptores é um fenómeno analógico também, Ou seja, se muitas moléculas de neurotransmisores são liberadas, ocupam muitos receptores e têm efeito maior, se liberam um pouco menos, têm efeito um pouco menor. Isso também é analógico e todos esses fenômenos são modulados por outras vias. Por exemplo, básicamente a transmissão no sistema nervoso central é glutamatérgica, envolve receptores AMPA ou em alguns casos receptores NMDA. Mas tudo isto é regulado por outras vias que não transmitem mensagens por si mesmas, mas que modulam a anterior. Então, há um processo central que é digital, que é a chegada de impulsos de um neurônio à sua conexão com a seguinte, mas no resto, há muitos processamentos analógicos.

RAN: As memórias que persistem ficariam acumuladas por meio de uma mudança nos circuitos cerebrais, fundamentalmente, ou além disso existe síntese proteica?

Há um processo de síntese proteica, toda a bioquímica que, como comentei brevemente, ocorre no hipocampo, desemboca na ativação de fatores de transcrição por proteínaquinase A e síntese proteica.

Quais são as proteínas que são sintetizadas? Sabemos relativamente pouco. Há uma que conhecemos muito bem, que é outro fator de transcrição, e que se chama C-FOS; sobre ela sabemos que sua síntese é necessária para que se estabeleça a memória. Por outro lado, há uma síntese geral de proteínas no hipocampo e noutras estruturas, que é tardia e necessária, pois se ela é inibida não há memória-.

Também há síntese de glicoproteínas que formam a matriz extracelular; e isto ocorre no hipocampo e nas conexões do hipocampo com outras estruturas. Então, é de se presumir que todo o processo de síntese proteica em uma sinapse que está ativada nesse momento desemboca em uma mudança em sua adesividade celular, através dessas glicoproteínas ou de outras coisas que ocorrem numa sinapse que foi específicamente ativada. Essas são as sinapses que são fortalecidas, e que depois mudam sua estrutura, inclusive.

As células hipocampais que formam a memória recebem mais o menos 10.000 terminações sinápticas excitatorias cada uma e podemos supor que em determinadas memórias se ativam dez, noutras cem e noutras mil dessas conexões, enquanto que em outras, nada. Em uma terceira memória se ativam aquelas outras duas que não ocorreram na primeira, e assim por diante. Dessa maneira se formam padrões complexos, de tal forma que uma mesma célula pode participar em muitissimas memórias. Portanto, qualquer uma delas acaba afetando a essa célula, inclusive morfológicamente. Entretanto, uma vez que essa célula tenha se alterado, ela vai processar de forma distinta não somente a memória que ela armazenou, como outras oisas parecidas, por exemplo, que envolvam sinapses vizinhas, no caso.

RAN: Muito bem, mas o LTP e todos estes processos bioquímicos terminam por explicar a memória, ou ela é ainda uma "caixa negra" ?

Eu creio que neste momento seria insensato dizer que a memória é devida ao LTP ou coisas parecidas. O que podemos dizer é que há uma sequência complexa de alterações bioquímicas que ocorrem no hipocampo. Essas mudanças são em geral idênticas, enquanto que noutros casos são muito parecidas, assim como suas sequências, às mudanças da LTP.

Por exemplo, no gânglio de um molusco chamado Aplisia, há uma forma de aprendizagem que é eletrofisiológica, ocorre um jato de serotonina e se produz uma facilitação neuronal que é limitada a um grupo de neurônios e que dura muitissimo tempo. Envolve as mesmas mudanças que a memória no hipocampo (LTP). Também se produzem mudanças semelhantes no gânglio principal das moscas, quando elas aprendem a não entrar a algum lugar cujo cheiro é ruim.

Portanto o que podemos dizer é que há uma série de alterações, há algumas cadeias de mudanças bioquímicas que por sua vez estão concatenadas entre si e que são necessárias para a formação de fenômenos plásticos; entre eles, a facilitação por serotonina na Aplisia, a aprendizagem de uma mosca, ou de uma abelha, as memórias no rato, e por evidência muito indireta, a memória em primatas e no ser humano (seja por que temos estruturas semelhantes, seja porque as drogas têm um efeito parecido).

Em conclusão, já podemos afirmar que conhecemos os mecanismos bioquímicos básicos da plasticidade. Agora, isto não quer dizer que uma coisa seja a base da outra, por exemplo, os bípedes caminham sempre movendo uma perna depois outra, mas isto não quer dizer que ao caminhar um animal seja necessariamente um macaco !

RAN: Já que estamos falando de insetos e outros animaizinhos; não teremos cometido o pecado do homocentrismo nas nossas concepções ou nos modelos teóricos da memória, no sentido de que pensamos que a maneira com que nos lembramos é a única estrategia possivel de memorizar existente na natureza ?

Bem, eu diria que até recentemente isso era verdade, mas que agora, justamente em razão de que acabei de contar para vocês, isso não mais ocorre. Se tem estudado o que podemos chamar de "modelos" de memória em abelhas, em moscas, etc., inclusive em nivel genético, mas que não sabemos bem se poderíamos chamar de memória.

Já, a aprendizagem no rato ou em um outro mamífero qualquer geralmente pode ser chamada de memória, pois é muito parecida com a humana, tem as mesmas fases, todos os mesmos elementos. Agora, a memória de uma mosca que entra em um lugar onde há mau cheiro e que no dia seguiente não entra mais aí, não sei até que ponto se pode chamar de memória. Há gente que diz que sim e gente que diz que não. Acho que todos esses modelos em invertebrados, e que não são modelos cognitivos em absoluto, nos têm levado a estabelecer uma sequência de processos bioquímicos que depois vemos que também são importantes para a memória de um rato, e assim inferimos -às vezes se comprova- de que noutras especies de mamíferos elas também são importantes.

Portanto, completamos aqui um círculo, ou seja, que o conceito e a palavra "memória" se usaram primeiramente aplicadas àquilo que nos lembra os seres humanos, o seu conceito semântico. Mas em seguida, passamos a aplicar o mesmo conceito a computadores, aos moluscos e às moscas. Pelo menos nos animais, o certo é que os mecanismos que estamos encontrando são os mesmos na maioria das espécies, com pequenas diferenças.

RAN: E até que ponto há diferenças interindividuais na memória e as estratégias da memória e em que medida isso é controlado genéticamente?

Claramente, há enormes diferenças em relação à capacidade de memória entre os humanos, assim como nos ratos. A porcentagem é difícil de estabelecer, mas o que sabemos verdadeiramente é que há um componente enorme de aprendizagem e treinamento e que em muitos casos é indubitável ser esse o mecanismo predominante. A memória é filha da prática, como provavelmente todas as funções que envolvem sinapses. Por exemplo, as sinapses neuromusculares de um atleta são mais rápidas, são melhores o mais eficientes e assim acontece com todas as sinapses. Com as sinapses que se usam para o sexo também, se uma pessoa não pratica o sexo durante anos, há um momento que vai custar muito ativar essa sinapses, isto é evidente. Agora, com a memória ocorre o mesmo, a prática a favorece. Como exemplo é mais o menos clássico que os bancários têm uma excelente memória para números, e que um jogador de xadrez tem grande memória especializada para esse jogo, não necessariamente para outras coisas, um médico costuma ter muito boa memória para caras e para nomes, etc.


Entrevista concedida à RAN- Revista Argentina de Neurociências.
Email: streji@satlink.com Tradução e adaptação para o português: Prof. Renato M.E. Sabbatini